quinta-feira, 3 de março de 2011

Uma análise do poema "Tão cedo passa tudo quanto passa!", de Ricardo Reis




Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis, 3-1-1923

O poema trata da vida enquanto espaço da transitoriedade. Há a aliteração da consoante |s|, sugerindo uma atmosfera de suavidade, de calma, a mesma calma com a qual o eu-poético aceita a transitoriedade da vida. Uma transitoriedade que faz com que tudo se encerre de forma precoce. O segundo verso pausa antes de que se encerre o significado que sugere, há o efeito de cavalgamento: o referido verso se encerra de forma precoce, lançando seu conteúdo sobre o terceiro verso. O encerramento precoce do verso pode ilustrar a própria precocidade com que tudo quanto morre... morre. O eu-poético constata tal precocidade, e inicia o terceiro verso de forma definitiva e exlamativa: “(...) Morre!”. Essa morte é definitiva: assim como encerra a unidade gramatical, ela encerra tudo e o faz de forma precoce. Também é precoce a forma como o autor constrói as duas sentenças gramaticais que preenchem os dois primeiros versos (e parte do terceiro): as sentenças são construídas na ordem VS, “passa (...) tudo”, “morre (...) tudo”. O verbo antecede ao sujeito fugindo da ordem natural do português que é a ordem SVO. O verbo é inserido de forma precoce na estrutura gramatical da sentença, sugerindo, mais uma vez, a própria precocidade do fim da vida. O eu-poético percebe a natureza dessa dinâmica e chega à conclusão de que a fugacidade da vida se impõe de tal forma que nada do que há (e o que há é “tão pouco”) pode ser apreendido pelo pensamento, pela razão. Nossa impressão do mundo é apenas imaginação, produto de uma reflexão impregnada de subjetividade, de extrapolação, por assim dizer, pois nada é passível de “se saber”. Diante de tal conjuntura, o que resta ao homem é o carpe diem, é gozar a vida. Mas pode-se dizer que há algo como uma armadilha, algo que sugere um desconforto, uma limitação nesta sugestão de carpe diem: o eu-poético impõe o silêncio e essa imposição é taxativa, definitiva. Ele encerra o penúltimo verso sem encerrar a sentença gramatical, deixando suspenso seu último conselho (ou ordem). Ao finalizar a sentença o eu-poético cria um efeito semântico assimétrico, pois as três primeiras expressões passam a ideia de prazer, deleite: devo circundar-me de rosas, ou seja, estar em contato com o que é belo, agradável aos olhos, ao olfato, devo amar, relacionar-me com o outro, doar-me e receber a doação do outro, devo beber, sujeitar o meu paladar ao que lhe cause prazer, satisfação, e, por fim, devo calar (?!). A assimetria é flagrante. Como assim devo me calar? Sim, “(...) E cala”. Apesar de incluí-lo no final da unidade gramatical, o eu-poético negou-se a inserir esse último imperativo no final do verso, da unidade poética, pois para ele essa ordem não é acessória, ela é fatal, é capital. E o que é interessante é que, ao encerrar a unidade sintática a que pertence, a ordem de “calar” encerra tudo, pois “o mais é nada”. Esse silêncio carrega consigo uma atitude de submissão, de aceitação e até de credulidade passiva: tudo morre, mas não morre por morrer, morre ante os deuses, sob sua vontade. Aqui a presença também fatal dos deuses e dos seus arbítrios. Dessa forma, não há o que se objetar, não há o que questionar, não há nem o que se saber. Voltando ao início do poema, percebemos que há um paralelo estrutural entre o terceiro e o sexto versos: ambos iniciam-se finalizando o verso anterior. Esse paralelo pode ser também semântico, pois o que é a morte, se não um calar eterno, um calar tão definitivo quanto o “E cala” proposto/imposto pelo eu-poético? Há uma diferença entre os referidos versos, enquanto no terceiro verso o eu-poético apresenta sua constatação de forma exclamativa, quase como uma descoberta, no sexto verso não há exclamação, não há surpresa, há aceitação, conformação: há o ponto final, tão final, tão definitivo quanto o conselho/ordem de calar-se.

2 comentários:

A norma culta e o português jurídico

  Por que os textos oficiais devem obedecer às regras gramaticais da língua portuguesa? Uma análise do inciso V do art. 5º da Portaria...