FRANCHI, Eglê Pontes, A Redação na escola: e as crianças eram difíceis. 2 Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 243 p. il.
Redação na Escola foi originalmente escrito sob a forma de dissertação de Mestrado na área de Metodologia do Ensino. O trabalho de pesquisa e prática da professora Eglê Franchi foi desenvolvido na E.E.P.G. Agrícola Dr. Antônio Carlos de Couto Barros, na Vila Santana, no distrito de Sousas, a 9km de Campinas, São Paulo. As crianças que frequentavam a escola eram, em sua maioria, moradoras do Conjunto Habitacional de Vila Santana, pertencentes ao estrato inferior no que diz respeito à situação econômica das famílias. Eglê Franchi, durante quatro meses, dispôs-se a documentar e avaliar seu dia-a-dia de trabalho à frente de uma turma da terceira série do primeiro grau, composta inicialmente por vinte alunos, dos quais três foram transferidos para outras escolas. Um desses dezessete alunos, segundo Eglê, não obteve sucesso algum durante os quatro meses de trabalho. Tal aluno, apesar de capaz de ler e interagir socialmente, não conseguia escrever. A professora evitou definir o seu caso como patológico e afirmou que a ausência de um psicólogo na escola e de um programa de assistência a crianças com dificuldades de aprendizagem tornou ainda mais difícil o seu trabalho junto àquela criança. Dos dezesseis alunos restantes, a autora afirmou que onze já haviam sido reprovados anteriormente. Essa turma que lhe foi designada continha aqueles alunos rejeitados pelos professores (seis educadores já haviam passado por essa classe) como incapazes, alunos-problema, burros ou mesmo como deficientes mentais. Toda essa estigmatização deu origem a um grupo de alunos que se desvalorizavam, que aceitavam para si aquela imagem de fracos e indisciplinados. Esse sentimento de autodesvalorização, segundo a autora, estava na base do comportamento agressivo que eles demonstravam constantemente.
Na Introdução ao seu livro, Eglê discorre a respeito das conseqüências desastrosas dessa atitude segregacional do sistema educacional que, oferecendo à criança socialmente desvalorizada um conhecimento totalmente desconectado de sua realidade, estigmatizando suas origens e sua língua, pressionando-a constantemente por meio de notas, acaba por negar-lhe o acesso ao saber, o saber que poderia libertá-la da opressão do sistema capitalista, dando-lhe condições de ascensão social e humana.
No primeiro capítulo do livro a autora apresenta sua proposta: empreender um trabalho de reflexão teórica e metodológica que não se afastasse da situação real de sala de aula, com o objetivo de analisar os problemas causados pela imposição da norma culta às crianças em início de escolarização e como essa imposição afeta a criatividade dessas crianças. A autora descreve seu primeiro contato com aquela turma como desagradável, pois a uma tentativa de apresentação se seguiu uma discussão repleta de xingamentos. Entretanto, a professora optou por não repreendê-los, mas aproveitou a situação para explorar-lhes a rivalidade, tirando daí uma primeira lição: a de que sua intervenção em momentos de crise deveria sempre buscar alterar e reorientar o processo, de forma positiva e ativa, e não por meio da repreensão, sempre negativa.
As atividades propostas por Eglê tinham sempre alguma conexão com a realidade das crianças e sempre provinham de uma sondagem de interesses. De um questionário sobre suas expectativas a respeito da escrita surgiu a primeira proposta de trabalho: a redação de estorinhas. Antes de solicitar-lhes a execução desse trabalho, a professora realizou uma atividade improvisada com gestos e mímicas, o que, dada a ludicidade e espontaneidade da atividade, lhe proporcionou o ambiente adequado para uma interação mais ativa com e entre os alunos. Foi assim que lhes propôs que redigissem uma estorinha.
As redações produzidas nesse primeiro momento eram curtas e pouco criativas, apesar de possuírem uma certa coesão interna. Os textos eram fragmentos de estorinhas ouvidas ou lidas nos livros didáticos e revelavam a tentativa das crianças de seguirem um modelo e uma linguagem estereotipados. Eglê levantou duas hipóteses para esse comportamento: seria resultado do hábito que os adultos têm de falar criança como se essa fosse incapaz de compreender algo mais complexo, ou então, tal comportamento teria origem em estereótipos veiculados pelos próprios livros didáticos. A autora acredita que ambas as hipóteses estão corretas.
Os textos produzidos se pareciam com blocos de orações justapostas. Eglê apresenta os problemas mais frequentes nestas primeiras redações: o uso excessivo de sentenças coordenadas, da conjunção e ou de sua substituição por “a” ou “então”, o uso extremo da repetição como elemento anafórico, ou melhor, a substituição completa da anáfora, enquanto elemento de coesão textual, por repetições. Ela afirma que 72,42% das conexões entre orações eram de natureza coordenativa, o que revelava baixa flexibilidade liguística dos alunos. As orações eram poucas, cerca de 13,75 por estorinha, em uma média de quatro períodos, revelando uma menor fluência linguística, mais pela mínima complexidade das orações do que pelo seu número reduzido. As orações possuíam apenas o verbo e seus argumentos, quando não se dava a elipse de um destes. Cerca de 90% das orações eram de complexidade mínima. As crianças não faziam uso de clíticos, mas também não os substituíam por pronomes do caso reto, como ocorre na linguagem coloquial: nos 22 ambientes em que caberia o uso do clítico, elas optaram pela construção elíptica. O uso do dialeto local também interferiu na produção das redações, seus reflexos mais latentes eram a falta de concordância verbal quando da distância do sujeito ou de sua posposição em relação ao verbo e também a falta de flexão dos elementos determinados dos sintagmas nominais (como em “os bolinho”), ou a não concordância do adjetivo predicativo com o sujeito.
Quanto aos problemas ortográficos, a autora afirma que os desvios apresentavam cinco padrões: substituição de letras mantendo-se a mesma forma fonética; grafia não correspondente a representação fonética, apesar de a pronúncia ser a habitual; erros relacionados à variação dialetal na linguagem; erros de separação silábica equivocada; e total afastamento entre grafia e representação fonética. Para a autora, a maioria dos erros reflete questões referentes à variação dialetal. Por tal motivo, Eglê considera ser importante levar as crianças a compreenderem tal variação e compararem sua pronúncia (e, mais à frente, sua escrita) com a pronúncia-padrão.
Eglê afirma que todos esses problemas presentes nas redações dos alunos revelavam seu sentimento de desvalorização e incapacidade. Para a autora, o declínio da espontaneidade e criatividade das crianças era causado pela própria escola que, rejeitando, desprestigiando e ridicularizando seu dialeto, impunha-lhes as convenções e as normas do dialeto-padrão culto. Essa repressão linguística associada ao autoritarismo do ambiente de sala de aula acaba por reduzir a expressividade, a espontaneidade e a criatividade das crianças. Ela deixa claro que não se trata de caracterizar esses alunos como menos capazes ou detentores de uma linguagem inferior: a questão é que eles estavam apenas iniciando sua vida escolar e já lhes tolhiam a capacidade comunicativa ao lhes imporem um dialeto que ainda não dominavam, ao mesmo tempo em que qualquer expressão carregada de regionalismo ou coloquialidade era rapidamente rejeitada. Como se expressariam nessas condições? Eglê afirma que o professor deve compreender a linguagem da criança e não tentar transformá-la de antemão.
Dessa forma a autora percebeu que seus alunos precisavam recuperar sua autovalorização, reconhecendo-se capazes de expressarem-se a si mesmos, interagirem com a professora e entre si de forma espontânea e livre. Seu objetivo era levá-los a progredirem em fluência e flexibilidade linguística, sem impor-lhes a norma culta como substitutiva de sua própria linguagem. Levá-los a compreender a necessidade de certas convenções para a inteligibilidade dos textos. Aquela valorização do dialeto da criança não deve afastar o aprendizado da norma culta, o aluno não deve ser privado de dominar esse segundo dialeto que lhe será tão necessário dentro da sociedade.
No segundo capítulo a autora começa a descrever algumas atividades que empreendeu na busca de que as crianças compreendessem que a linguagem pode ser usada de diferentes formas, e que há algumas variações dialetais que têm prestígio social e outras que não têm. Ela objetivava que as crianças entendessem que a norma culta, correspondente à linguagem das camadas sociais que detêm poder econômico, foi o dialeto definido como padrão justamente por ser uma variação socialmente prestigiada. Eglê definiu como um de seus objetivos que seus alunos compreendessem essa oposição entre o padrão culto e o popular e que fossem capazes de produzir frases e expressões em ambos os dialetos. Dessa forma, a professora propôs atividades escritas em que eles pudessem perceber essas diferenças nas falas do pedreiro, do padeiro, do delegado, da diretora etc. Todas essas atividades eram antecedidas por discussões orais e os alunos eram sempre lembrados de que nenhum desses dialetos é mais correto que outro. Depois de duas semanas, ela aplicou um questionário oral sobre toda aquela discussão a respeito dos usos da língua e uma tarefa escrita em que cada aluno deveria escrever um diálogo entre ele, enquanto “escritor escolarizado”, e personagens da sociedade como o pipoqueiro ou o lixeiro.
Após essa avaliação ela começou a introduzir as primeiras convenções da escrita, primeiro por meio de diálogos e dramatizações, depois aplicando as conclusões em trabalhos escritos, no que concerne à pontuação em frases interrogativas, afirmativas e exclamativas. Ela também aplicou um exercício em quadrinhos no qual eles pudessem escrever as falas nos balões compreendendo as sucessões de eventos e de diálogos e, depois, transcrevendo em forma de texto as conversas, com a pontuação adequada. De todas essas atividades a autora concluiu que os alunos, ao escreverem fazendo uso da norma culta, associavam a ela o uso de expressões de etiquetas sociais de boa educação. Também percebeu que pouco a pouco deixavam de inserir em seus textos expressões características de seu dialeto local, fazendo uso destas apenas quando queriam representar a fala de personagens de seu meio. Eglê afirma que a evolução das crianças no que diz respeito à pontuação e ortografia era resultado de sua estratégia de introduzir tais conteúdos passo a passo, fixando objetivos graduais e escalares que seriam exclusivamente considerados por ocasião das avaliações.
No capítulo três a autora descreve as atividades em que as crianças reproduziam estorinhas prontas. A reprodução era antecedida pela leitura expressiva da estória por parte da professora, pelo estudos dos recursos expressivos do texto, pela interpretação oral em grupo, pela ordenação e reordenação das unidades do texto e pela ilustração, feita pelas crianças, de eventos do texto. A reprodução seria o último passo dessa atividade. Durante o momento de estudo dos recurso expressivos do texto, as crianças teriam a oportunidade de aprenderem novas palavras, novas formas de conexo entre orações, o padrão da concordância verbal e nominal, entre outras convenções to necessárias prática da escrita em norma culta. Como avaliação para essas atividades de reprodução, a professora propôs a reprodução de um texto de uma aluna conhecida por todos na comunidade. Ela revela que apesar do caráter mimético da atividade, os alunos demonstraram espontaneidade e pequenas inovações de estilo em seus textos.
Eglê afirma que a passagem para a produção textual se deu quase imperceptivelmente para os alunos. Ela propôs um trabalho em quatro etapas: a primeira consistia em produzir um texto a partir de quadrinhos de uma estorinha previamente organizados segundo os acontecimentos; na segunda etapa, os quadrinhos não estariam ordenados; na terceira, a estorinha deveria ser escrita a partir de um parágrafo inicial dado; na última etapa os alunos produziriam um texto livremente a partir de estímulos diversos. A autora cita na segunda etapa uma estratégia utilizada por ela para estimular a interação entre os alunos: a redação coletiva. Essa atividade consistia em levá-los a discutir a respeito da ordenação correta dos quadrinhos, das possibilidades de invenção de fatos. Ela revela que essa prática se tornou habitual e que os alunos, colaborando uns com os outros, evoluíram em fluência linguística, ao compartilharem descobertas e evoluções. Uma atividade referente à última etapa destacada por ela como bem sucedida foi o trabalho do borrão: as crianças fizeram uma mancha com tinta em um papel e, a partir do desenho sugerido pela mancha, deveriam criar uma estorinha.
A autora afirma que a evolução das crianças foi excepcional, mas que apesar disso em alguns momentos algumas delas oscilavam entre um texto muito bem escrito e um trabalho “desastrado”, segundo suas palavras. Para que tais oscilações se tornem menos frequentes ela explica que há a necessidade de continuidade no trabalho do professor, de constância e paciência por parte de quem ensina.
Os alunos dessa turma, antes desvalorizados pelos outros e por si mesmos, passaram a considerar a escrita como uma forma de expressão pessoal, demonstrando espontaneidade tanto nas atividades orais quanto nas escritas. Agora eles compreendiam que sua linguagem não era errada. Compreenderam que havia uma norma-padrão a ser aprendida e que essa era importante para a inclusão deles na sociedade e no mundo da escrita. Seus textos agora apresentavam coesão. Houve um aumento significativo na fluência linguística daquelas crianças, cuja média de períodos por redação passou de 4,4 para 13,8. Agora eles compreendiam a existência de várias formas de conexão entre orações além da coordenação de sentenças: eram capazes de construir orações subordinadas temporais, causais, relativas, reduzidas, entre outras. Aquelas orações de complexidade mínima passaram de 90% para menos de 55% do total de orações utilizadas. Quanto ao domínio do dialeto padrão culto, eles passaram a fazer uso de formas pronominais átonas e a concordância verbal se dava mesmo em ambientes de posposição e distância do sujeito em relação ao verbo. De toda essa evolução, Eglê conclui que a forma mais fácil de levar as crianças a dominar o dialeto padrão culto é justamente respeitando e valorizando o seu dialeto próprio, dando-lhes um espaço para expressão e despertando a sua consciência quanto à existência das variações dialetais.
Redação na Escola é uma obra deslumbrante. Eglê Franchi demonstra que seu trabalho com essa turma de terceira série não se resumiu a uma pesquisa de campo. Ela demonstra ter empenhado todas as suas forças na busca da evolução dessas crianças no exercício da escrita. A abordagem sociolinguística da autora revela sua preocupação com a realidade daquelas crianças e desmistifica muitos aspectos relativos ao aprendizado da norma culta. A autora colocou no livro cópias das próprias redações dos alunos, o que dá uma ideia ainda mais próxima da realidade de seu trabalho em sala de aula. As atividades propostas se mostraram bastante criativas e instrumentalizavam os alunos para uma prática autônoma do ato de escrever. O livro é bastante útil para professores que desejam ver seus alunos aprenderem a fazer uso da escrita enquanto elemento de expressão pessoal.
Por Lorena Brandizzi
Redação na Escola foi originalmente escrito sob a forma de dissertação de Mestrado na área de Metodologia do Ensino. O trabalho de pesquisa e prática da professora Eglê Franchi foi desenvolvido na E.E.P.G. Agrícola Dr. Antônio Carlos de Couto Barros, na Vila Santana, no distrito de Sousas, a 9km de Campinas, São Paulo. As crianças que frequentavam a escola eram, em sua maioria, moradoras do Conjunto Habitacional de Vila Santana, pertencentes ao estrato inferior no que diz respeito à situação econômica das famílias. Eglê Franchi, durante quatro meses, dispôs-se a documentar e avaliar seu dia-a-dia de trabalho à frente de uma turma da terceira série do primeiro grau, composta inicialmente por vinte alunos, dos quais três foram transferidos para outras escolas. Um desses dezessete alunos, segundo Eglê, não obteve sucesso algum durante os quatro meses de trabalho. Tal aluno, apesar de capaz de ler e interagir socialmente, não conseguia escrever. A professora evitou definir o seu caso como patológico e afirmou que a ausência de um psicólogo na escola e de um programa de assistência a crianças com dificuldades de aprendizagem tornou ainda mais difícil o seu trabalho junto àquela criança. Dos dezesseis alunos restantes, a autora afirmou que onze já haviam sido reprovados anteriormente. Essa turma que lhe foi designada continha aqueles alunos rejeitados pelos professores (seis educadores já haviam passado por essa classe) como incapazes, alunos-problema, burros ou mesmo como deficientes mentais. Toda essa estigmatização deu origem a um grupo de alunos que se desvalorizavam, que aceitavam para si aquela imagem de fracos e indisciplinados. Esse sentimento de autodesvalorização, segundo a autora, estava na base do comportamento agressivo que eles demonstravam constantemente.
Na Introdução ao seu livro, Eglê discorre a respeito das conseqüências desastrosas dessa atitude segregacional do sistema educacional que, oferecendo à criança socialmente desvalorizada um conhecimento totalmente desconectado de sua realidade, estigmatizando suas origens e sua língua, pressionando-a constantemente por meio de notas, acaba por negar-lhe o acesso ao saber, o saber que poderia libertá-la da opressão do sistema capitalista, dando-lhe condições de ascensão social e humana.
No primeiro capítulo do livro a autora apresenta sua proposta: empreender um trabalho de reflexão teórica e metodológica que não se afastasse da situação real de sala de aula, com o objetivo de analisar os problemas causados pela imposição da norma culta às crianças em início de escolarização e como essa imposição afeta a criatividade dessas crianças. A autora descreve seu primeiro contato com aquela turma como desagradável, pois a uma tentativa de apresentação se seguiu uma discussão repleta de xingamentos. Entretanto, a professora optou por não repreendê-los, mas aproveitou a situação para explorar-lhes a rivalidade, tirando daí uma primeira lição: a de que sua intervenção em momentos de crise deveria sempre buscar alterar e reorientar o processo, de forma positiva e ativa, e não por meio da repreensão, sempre negativa.
As atividades propostas por Eglê tinham sempre alguma conexão com a realidade das crianças e sempre provinham de uma sondagem de interesses. De um questionário sobre suas expectativas a respeito da escrita surgiu a primeira proposta de trabalho: a redação de estorinhas. Antes de solicitar-lhes a execução desse trabalho, a professora realizou uma atividade improvisada com gestos e mímicas, o que, dada a ludicidade e espontaneidade da atividade, lhe proporcionou o ambiente adequado para uma interação mais ativa com e entre os alunos. Foi assim que lhes propôs que redigissem uma estorinha.
As redações produzidas nesse primeiro momento eram curtas e pouco criativas, apesar de possuírem uma certa coesão interna. Os textos eram fragmentos de estorinhas ouvidas ou lidas nos livros didáticos e revelavam a tentativa das crianças de seguirem um modelo e uma linguagem estereotipados. Eglê levantou duas hipóteses para esse comportamento: seria resultado do hábito que os adultos têm de falar criança como se essa fosse incapaz de compreender algo mais complexo, ou então, tal comportamento teria origem em estereótipos veiculados pelos próprios livros didáticos. A autora acredita que ambas as hipóteses estão corretas.
Os textos produzidos se pareciam com blocos de orações justapostas. Eglê apresenta os problemas mais frequentes nestas primeiras redações: o uso excessivo de sentenças coordenadas, da conjunção e ou de sua substituição por “a” ou “então”, o uso extremo da repetição como elemento anafórico, ou melhor, a substituição completa da anáfora, enquanto elemento de coesão textual, por repetições. Ela afirma que 72,42% das conexões entre orações eram de natureza coordenativa, o que revelava baixa flexibilidade liguística dos alunos. As orações eram poucas, cerca de 13,75 por estorinha, em uma média de quatro períodos, revelando uma menor fluência linguística, mais pela mínima complexidade das orações do que pelo seu número reduzido. As orações possuíam apenas o verbo e seus argumentos, quando não se dava a elipse de um destes. Cerca de 90% das orações eram de complexidade mínima. As crianças não faziam uso de clíticos, mas também não os substituíam por pronomes do caso reto, como ocorre na linguagem coloquial: nos 22 ambientes em que caberia o uso do clítico, elas optaram pela construção elíptica. O uso do dialeto local também interferiu na produção das redações, seus reflexos mais latentes eram a falta de concordância verbal quando da distância do sujeito ou de sua posposição em relação ao verbo e também a falta de flexão dos elementos determinados dos sintagmas nominais (como em “os bolinho”), ou a não concordância do adjetivo predicativo com o sujeito.
Quanto aos problemas ortográficos, a autora afirma que os desvios apresentavam cinco padrões: substituição de letras mantendo-se a mesma forma fonética; grafia não correspondente a representação fonética, apesar de a pronúncia ser a habitual; erros relacionados à variação dialetal na linguagem; erros de separação silábica equivocada; e total afastamento entre grafia e representação fonética. Para a autora, a maioria dos erros reflete questões referentes à variação dialetal. Por tal motivo, Eglê considera ser importante levar as crianças a compreenderem tal variação e compararem sua pronúncia (e, mais à frente, sua escrita) com a pronúncia-padrão.
Eglê afirma que todos esses problemas presentes nas redações dos alunos revelavam seu sentimento de desvalorização e incapacidade. Para a autora, o declínio da espontaneidade e criatividade das crianças era causado pela própria escola que, rejeitando, desprestigiando e ridicularizando seu dialeto, impunha-lhes as convenções e as normas do dialeto-padrão culto. Essa repressão linguística associada ao autoritarismo do ambiente de sala de aula acaba por reduzir a expressividade, a espontaneidade e a criatividade das crianças. Ela deixa claro que não se trata de caracterizar esses alunos como menos capazes ou detentores de uma linguagem inferior: a questão é que eles estavam apenas iniciando sua vida escolar e já lhes tolhiam a capacidade comunicativa ao lhes imporem um dialeto que ainda não dominavam, ao mesmo tempo em que qualquer expressão carregada de regionalismo ou coloquialidade era rapidamente rejeitada. Como se expressariam nessas condições? Eglê afirma que o professor deve compreender a linguagem da criança e não tentar transformá-la de antemão.
Dessa forma a autora percebeu que seus alunos precisavam recuperar sua autovalorização, reconhecendo-se capazes de expressarem-se a si mesmos, interagirem com a professora e entre si de forma espontânea e livre. Seu objetivo era levá-los a progredirem em fluência e flexibilidade linguística, sem impor-lhes a norma culta como substitutiva de sua própria linguagem. Levá-los a compreender a necessidade de certas convenções para a inteligibilidade dos textos. Aquela valorização do dialeto da criança não deve afastar o aprendizado da norma culta, o aluno não deve ser privado de dominar esse segundo dialeto que lhe será tão necessário dentro da sociedade.
No segundo capítulo a autora começa a descrever algumas atividades que empreendeu na busca de que as crianças compreendessem que a linguagem pode ser usada de diferentes formas, e que há algumas variações dialetais que têm prestígio social e outras que não têm. Ela objetivava que as crianças entendessem que a norma culta, correspondente à linguagem das camadas sociais que detêm poder econômico, foi o dialeto definido como padrão justamente por ser uma variação socialmente prestigiada. Eglê definiu como um de seus objetivos que seus alunos compreendessem essa oposição entre o padrão culto e o popular e que fossem capazes de produzir frases e expressões em ambos os dialetos. Dessa forma, a professora propôs atividades escritas em que eles pudessem perceber essas diferenças nas falas do pedreiro, do padeiro, do delegado, da diretora etc. Todas essas atividades eram antecedidas por discussões orais e os alunos eram sempre lembrados de que nenhum desses dialetos é mais correto que outro. Depois de duas semanas, ela aplicou um questionário oral sobre toda aquela discussão a respeito dos usos da língua e uma tarefa escrita em que cada aluno deveria escrever um diálogo entre ele, enquanto “escritor escolarizado”, e personagens da sociedade como o pipoqueiro ou o lixeiro.
Após essa avaliação ela começou a introduzir as primeiras convenções da escrita, primeiro por meio de diálogos e dramatizações, depois aplicando as conclusões em trabalhos escritos, no que concerne à pontuação em frases interrogativas, afirmativas e exclamativas. Ela também aplicou um exercício em quadrinhos no qual eles pudessem escrever as falas nos balões compreendendo as sucessões de eventos e de diálogos e, depois, transcrevendo em forma de texto as conversas, com a pontuação adequada. De todas essas atividades a autora concluiu que os alunos, ao escreverem fazendo uso da norma culta, associavam a ela o uso de expressões de etiquetas sociais de boa educação. Também percebeu que pouco a pouco deixavam de inserir em seus textos expressões características de seu dialeto local, fazendo uso destas apenas quando queriam representar a fala de personagens de seu meio. Eglê afirma que a evolução das crianças no que diz respeito à pontuação e ortografia era resultado de sua estratégia de introduzir tais conteúdos passo a passo, fixando objetivos graduais e escalares que seriam exclusivamente considerados por ocasião das avaliações.
No capítulo três a autora descreve as atividades em que as crianças reproduziam estorinhas prontas. A reprodução era antecedida pela leitura expressiva da estória por parte da professora, pelo estudos dos recursos expressivos do texto, pela interpretação oral em grupo, pela ordenação e reordenação das unidades do texto e pela ilustração, feita pelas crianças, de eventos do texto. A reprodução seria o último passo dessa atividade. Durante o momento de estudo dos recurso expressivos do texto, as crianças teriam a oportunidade de aprenderem novas palavras, novas formas de conexo entre orações, o padrão da concordância verbal e nominal, entre outras convenções to necessárias prática da escrita em norma culta. Como avaliação para essas atividades de reprodução, a professora propôs a reprodução de um texto de uma aluna conhecida por todos na comunidade. Ela revela que apesar do caráter mimético da atividade, os alunos demonstraram espontaneidade e pequenas inovações de estilo em seus textos.
Eglê afirma que a passagem para a produção textual se deu quase imperceptivelmente para os alunos. Ela propôs um trabalho em quatro etapas: a primeira consistia em produzir um texto a partir de quadrinhos de uma estorinha previamente organizados segundo os acontecimentos; na segunda etapa, os quadrinhos não estariam ordenados; na terceira, a estorinha deveria ser escrita a partir de um parágrafo inicial dado; na última etapa os alunos produziriam um texto livremente a partir de estímulos diversos. A autora cita na segunda etapa uma estratégia utilizada por ela para estimular a interação entre os alunos: a redação coletiva. Essa atividade consistia em levá-los a discutir a respeito da ordenação correta dos quadrinhos, das possibilidades de invenção de fatos. Ela revela que essa prática se tornou habitual e que os alunos, colaborando uns com os outros, evoluíram em fluência linguística, ao compartilharem descobertas e evoluções. Uma atividade referente à última etapa destacada por ela como bem sucedida foi o trabalho do borrão: as crianças fizeram uma mancha com tinta em um papel e, a partir do desenho sugerido pela mancha, deveriam criar uma estorinha.
A autora afirma que a evolução das crianças foi excepcional, mas que apesar disso em alguns momentos algumas delas oscilavam entre um texto muito bem escrito e um trabalho “desastrado”, segundo suas palavras. Para que tais oscilações se tornem menos frequentes ela explica que há a necessidade de continuidade no trabalho do professor, de constância e paciência por parte de quem ensina.
Os alunos dessa turma, antes desvalorizados pelos outros e por si mesmos, passaram a considerar a escrita como uma forma de expressão pessoal, demonstrando espontaneidade tanto nas atividades orais quanto nas escritas. Agora eles compreendiam que sua linguagem não era errada. Compreenderam que havia uma norma-padrão a ser aprendida e que essa era importante para a inclusão deles na sociedade e no mundo da escrita. Seus textos agora apresentavam coesão. Houve um aumento significativo na fluência linguística daquelas crianças, cuja média de períodos por redação passou de 4,4 para 13,8. Agora eles compreendiam a existência de várias formas de conexão entre orações além da coordenação de sentenças: eram capazes de construir orações subordinadas temporais, causais, relativas, reduzidas, entre outras. Aquelas orações de complexidade mínima passaram de 90% para menos de 55% do total de orações utilizadas. Quanto ao domínio do dialeto padrão culto, eles passaram a fazer uso de formas pronominais átonas e a concordância verbal se dava mesmo em ambientes de posposição e distância do sujeito em relação ao verbo. De toda essa evolução, Eglê conclui que a forma mais fácil de levar as crianças a dominar o dialeto padrão culto é justamente respeitando e valorizando o seu dialeto próprio, dando-lhes um espaço para expressão e despertando a sua consciência quanto à existência das variações dialetais.
Redação na Escola é uma obra deslumbrante. Eglê Franchi demonstra que seu trabalho com essa turma de terceira série não se resumiu a uma pesquisa de campo. Ela demonstra ter empenhado todas as suas forças na busca da evolução dessas crianças no exercício da escrita. A abordagem sociolinguística da autora revela sua preocupação com a realidade daquelas crianças e desmistifica muitos aspectos relativos ao aprendizado da norma culta. A autora colocou no livro cópias das próprias redações dos alunos, o que dá uma ideia ainda mais próxima da realidade de seu trabalho em sala de aula. As atividades propostas se mostraram bastante criativas e instrumentalizavam os alunos para uma prática autônoma do ato de escrever. O livro é bastante útil para professores que desejam ver seus alunos aprenderem a fazer uso da escrita enquanto elemento de expressão pessoal.
Por Lorena Brandizzi