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segunda-feira, 31 de julho de 2017

Cidadania no Brasil



 
Texto: CARVALHO. José Murilo de. “Introdução: Mapa da viagem.” ; “Conclusão: A cidadania na encruzilhada” Em Cidadania no Brasil O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp. 7-13; 219-229

            Carvalho traz uma reflexão extremamente pertinente a respeito dos caminhos percorridos pela democracia brasileira rumo à conquista da cidadania. O autor explica que o fim da ditadura militar, em 1985, criou grandes expectativas em relação aos resultados que seriam gerados pela redemocratização. No entanto, essas expectativas não foram completamente satisfeitas. Segundo Carvalho, conquistou-se a garantia da liberdade de pensamento e de manifestação e a garantia da participação pelo voto, mas ainda resta um longo caminho rumo à conquista de segurança, emprego, desenvolvimento e justiça social. Como consequência, tem-se o desgaste das instituições democráticas já implementadas.
            Para Carvalho, o que está no cerne desse descompasso é o “problema da cidadania”. O autor expliqua que “o exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como  a segurança e o emprego” (CARVALHO, 2009, p. 8). Apesar de uma cidadania plena, que alcance todas essas garantias, ser um ideal talvez inatingível, torna-se necessária enquanto norte e parâmetro. Essa cidadania plena abarcaria direitos civis, políticos e sociais. A garantia dos direitos civis (fundamentais) dependeria de uma “justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos” (CARVALHO, 2009, p. 9). Os direitos políticos dizem respeito à participação da sociedade em seu próprio governo. Por último, os direitos sociais vinculam-se à ideia de distribuição de riquezas e justiça social.
            O autor, fazendo referência a T. A. Marshall, explica que a conquista desses direitos seguiu uma certa sequência lógica na Inglaterra: primeiramente, surgiram lá os direitos civis, depois os políticos e por fim, houve a conquista dos direitos sociais, no século XX. A educação popular, apesar de reconhecida como um direito social, foge a essa sequência, pois está na base da conquista de todos os outros direitos, por permitir que os indivíduos se reconhecessem enquanto sujeitos daqueles direitos e lutassem por eles. Carvalho assume que não há um único caminho para a construção da cidadania plena, mas afirma que caminhos diferentes geram cidadanias diferentes. Segundo o autor, o Brasil se diferencia da Inglaterra, nessa questão, por duas razões: a ênfase nos direitos sociais e a inversão completa na ordem de surgimento/implementação dos direitos.
            Em seguida, Carvalho explicita um outro aspecto histórico da cidadania: seu desenvolvimento vinculado ao surgimento do Estado-nação. Para o autor, “a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. [Elas] se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado” (CARVALHO, 2009, p. 12). O autor aborda a crise do Estado-nação, inserida no contexto da internacionalização do capitalismo, dos avanços tecnológicos e da criação de blocos econômicos e políticos, que acabaram por reduzir o poder dos Estados.
            No capítulo de conclusão, é retomado o problema da cidadania no Brasil. De forma mais clara, Carvalho se posiciona a respeito do caráter prejudicial daquela inversão cronológica dos direitos que aqui se deu. A implementação dos direitos sociais em um momento de “supressão dos direitos políticos e redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular” (CARVALHO, 2009, p. 219) criou aqui uma cultura de valorização do Poder Executivo, uma “estadania”, como o autor a denomina. Como consequência, a sociedade não valoriza a representação e vê escapar de suas mãos importantes direitos civis. Além disso, há prejuízo em sua capacidade de organização e os representantes do Poder Legislativo são desprezados, ao mesmo tempo em que são vistos como fonte de favores pessoais.
            Carvalho acredita que, apesar da gravidade da situação, há esperança para o Brasil, que ainda não sofre de mazelas mais graves, como a redução extrema do papel do Estado e o apagamento da identidade nacional, que estão afetando países da União Europeia. Para o autor, a esperança aqui reside em duas experiências que, para ele, sugerem otimismo: “o surgimento das organizações não-governamentais que, sem serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse público” (CARVALHO, 2009, p. 227) e experiências de prefeituras que têm procurado envolver a população na “formulação e execução de políticas públicas, sobretudo no que tange ao orçamento e às obras públicas” (CARVALHO, 2009, p. 228).        
            Por fim, o autor alerta para o risco da cultura do consumo, que ameaça o avanço democrático ao criar na sociedade uma valorização maior do direito ao consumo, do que dos direitos políticos. Segundo Carvalho, essa cultura dificulta a busca pela solução do problema da cidadania, impedindo que o sistema democrático resolva o grande problema da desigualdade que para o autor é a nova escravidão: “a desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática” (CARVALHO, 2009, p. 229).

Sistemas eleitorais



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Texto: NICOLAU, Jairo. “Cap.1 – Sistemas majoritários; Cap.2 – Sistemas proporcionais”. In: Sistemas eleitorais. 5ª Edição; Rio de Janeiro: FGV, 2004, pp. 17-61

No Capítulo 1, Nicolau aborda os sistemas eleitorais majoritários, entendidos como aqueles em que os candidatos mais votados são os únicos que alcançam representação. O autor aborda separadamente os sistemas de maioria simples, de dois turnos e de voto alternativo. No sistema de maioria simples, o candidato eleito é que o recebe mais votos que seus representantes. Esse sistema tem sido utilizado no Reino Unido desde 1264, quando surgiu o Parlamento. O território inglês divide-se em 659 distritos, sendo que cada partido pode apresentar apenas um candidato por distrito (sistema de maioria simples em distrito uninominal). Segundo Nicolau, as críticas a esse sistema apontam para distorções de representação. No entanto, seus defensores argumentam que ele permite que os eleitores tenham um maior grau de controle dos representantes eleitos.
Em seguida, Nicolau explica o funcionamento do sistema de dois turnos. Segundo o autor, quando ele é utilizado para a eleição de membros da Câmara dos Deputados, funciona de forma semelhante à do sistema de maioria simples, pois também há a divisão do país em distritos uninominais. Caso nenhum dos candidatos alcance mais de 50% dos votos, há um segundo turno em que os candidatos mais votados disputam novamente. Os defensores desse sistema afirmam que há “garantia de representação de comunidades no Parlamento e maior capacidade de controle da atividade do representante” (p. 25). Além disso haveria uma tendência à eleição de partidos mais moderados. No entanto, Nicolau argumenta que não há a garantia de que uma vitória por maioria absoluta garanta a obtenção de mais de 50% de representatividade por parte do partido seja alcançada nacionalmente.
Nicolau avança em sua explanação apresentando as características do sistema de voto alternativo, adotado na Austrália para a escolha dos membros da House of Representatives. Dentro desse sistema, não há a necessidade de uma nova eleição para que o candidato receba maioria absoluta dos votos, pois há a transferência de votos dos candidatos com menor número de votos. O autor afirma que esse sistema, apesar de eleger um candidato representativo, não evita “as distorções entre a votação e a representação dos partidos na Câmara dos Deputados” (NICOLAU, 2004, p. 29).
Segundo Nicolau, no que diz respeito à eleição de presidentes, o sistema majoritário é o mais utilizado, sendo que há países em que essa escolha é direta e países onde é indireta, como nos Estados Unidos, onde um colégio eleitoral, composto por 538 delegados, elege o novo presidente. Caso nenhum candidato obtenha maioria absoluta dos votos, o novo representante do Executivo será escolhido pela Câmara dos Deputados. O autor ainda apresenta exemplos de países onde o presidente é escolhido pelo sistema de maioria simples (México, Venezuela, Honduras, entre outros) e pelo sistema de dois turnos (Brasil, Áustria, Portugal, Rússia, entre outros). Nicolau finaliza o capítulo apontando para o fato de que o sistema eleitoral influencia o padrão de coalizão de partidos.
No segundo capítulo, relativo à representação proporcional, o autor apresenta suas duas modalidades: o voto único transferível e o sistema de lista. Segundo Nicolau, a representação proporcional busca “que assegurar a diversidade de opiniões de uma sociedade esteja refletida no Legislativo e garantir uma correspondência entre os votos recebidos pelos partidos e sua representação” (NICOLAU, 2004, p. 36). O voto único transferível tem em sua base o sistema proposto por Thomas Hare, que acreditava que as opiniões individuais deveriam ser representadas, mais do que a opinião de partidos ou comunidades. Para Nicolau, nesse sistema, “o eleitor tem controle sobre a natureza da transferência de seu voto [pois] (...) a transferência dos votos é feita exclusivamente para os nomes especificados pelo eleitor” (NICOLAU, 2004, p. 41).
No sistema de representação proporcional por lista, “cada partido (ou coligação) apresenta uma lista de candidatos; os votos de cada lista partidária são contados; as cadeiras são distribuídas entre os partidos proporcionalmente à votação obtida pelas listas; as cadeiras são ocupadas por alguns dos nomes que compõem a lista” (NICOLAU, 2004, p. 43). Apesar de parecer simples, Nicolau afirma que trata-se de um sistema complexo, afetado por cinco fatores: a fórmula eleitoral adotada para a distribuição de assentos; “a magnitude dos distritos e a existência de mais de um nível para alocação de cadeiras” (NICOLAU, 2004, p. 43); a cláusula de exclusão de partidos; a possibilidade da construção de coligações e as regras estabelecidas para a própria formação da lista (lista aberta ou fechada).
O autor finaliza apresentando as críticas à representação. A primeira critica a ênfase na ideia da representatividade em eleições e a indiferença quanto ao seu objetivo de formação dos governos. Esse sistema tende à produção de governos instáveis em que os partidos acabam por sofrer mutações quando entra em coalizões, deixando de representar o que seus eleitores acreditavam que ele representaria. A segunda critica a exigência de distritos plurinominais que reduziriam a ligação entre eleitores e representantes, prejudicando a possibilidade de o eleitor punir ou recompensar o representante eleito, com base em sua atividade política.

Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. (BARROSO, Luís Roberto.)



Texto: BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.

            Em seu artigo, Barroso aborda os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial no Brasil, apontando as diferenças entre eles e as consequências positivas e negativas que geram nos cenários político e jurídico nacionais. Segundo o autor, a judicialização ocorre quando “questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo” (BARROSO, p. 3). Para o autor, esse fenômeno não é exclusividade do Brasil, mas algumas de suas causas seriam decorrentes de nossa organização institucional.
A primeira causa apontada por Barroso foi a redemocratização que levou à promulgação da Constituição Federal de 1988 e que tornou a Justiça brasileira, mais especificamente o Supremo Tribunal Federal, mais independente e politicamente ativo. Além disso, ela trouxe conscientização à população quanto à possibilidade de acesso à Justiça com vistas à proteção de seus direitos. A segunda causa da judicialização foi o que o autor denomina constitucionalização abrangente, fenômeno que tornou constitucionais questões que antes pertenciam ao âmbito legislativo e político. O autor explica que, quando uma questão é elevada ao nível constitucional, “ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial” (BARROSO, p. 4). A última causa apresentada pelo autor é “o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade” (BARROSO, p. 4), com sua possibilidade de controle difuso e incidental ou controle concreto, por ação direta do STF. Esse último aspecto tornou possível o tratamento pelo STF de praticamente qualquer questão de relevância política ou moral. O autor explica que a judicialização não se deve à vontade do Judicário: o STF não tem a opção de se manifestar ou não a respeito de uma ação, desde que ela preencha os requisitos legais de cabimento. Dessa forma, a judicialização é consequência do desenho institucional e não de uma postura voluntária do Judiciário.
            Barroso trata em seguida do segundo fenômeno citado anteriormente, o ativismo judicial, que seria, diferentemente da judicialização, decorrente de uma “escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance” (BARROSO, p. 6). A auto-contenção judicial apresenta-se como o fenômeno oposto ao ativismo, pois pressupõe três atitudes: o judiciário evita agir quando não há indicação expressa de cabimento de sua ação; utilização de “critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos” (p. 7); e abstenção em questões de políticas públicas. Segundo Barroso, tanto a judicialização quanto o ativismo judicial devem-se a uma crise extrema no Legislativo que tem instigado o Judiciário a avançar na busca da defesa da Constituição, uma vez que aquele poder tem se mostrado omisso em suas funções e ilegítimo no exercício da representatividade.
            Para o autor, os fenômenos apresentados têm uma face positiva e outra negativa. Do ponto de vista positivo, o Judiciário tem tratado de questões que aguardavam posicionamento legal há muito tempo, como por exemplo a greve no serviço público. No entanto, há um lado negativo, a saber, a exposição das mazelas do Legislativo. Barroso deixa bem clara a necessidade urgente de uma reforma política que viria a “fomentar autenticidade partidária, estimular vocações e reaproximar a classe política da sociedade civil” (BARROSO, p. 9).
O autor apresenta, em seguida, as críticas relativas à intervenção judicial excessiva na sociedade brasileira. Tais críticas se voltam à ameaça à legitimidade democrática, à politização da justiça e à limitação da capacidade institucional do Judiciário. Quanto à primeira crítica, o autor explica que há dois fundamentos que garantem a defesa da legitimidade democrática por meio da intervenção judicial: um fundamento normativo (previsão constitucional de atuação técnica e imparcial do Judiciário) e um fundamento filosófico (o Judiciário é responsável pela defesa do Estado constitucional democrático). Quanto à segunda crítica, a politização do Direito, o autor a rebate afirmando que apesar de não haver um limite claro separando política e Direito, “em uma cultura pós-positivista, o Direito se aproxima da Ética, tornando-se instrumento da legitimidade, da justiça e da realização da dignidade da pessoa humana” (BARROSO, p. 13). Quanto à última crítica, que se concentra na capacidade institucional limitada do Judiciário, o autor reconhece a necessidade de que esse Poder se avalie quanto aos limites de sua capacidade técnica de decisão e aos efeitos sistêmicos que podem advir de seus posicionamentos, se auto-limitando espontaneamente quando necessário.
Barroso conclui retomando resumidamente cada ponto abordado e apontando para o fato de que o ativismo judicial, até o momento, tem operado de forma benéfica, sendo parte da solução para questões que afligem o país há muito tempo. No entanto, segundo o autor, “ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado” (BARROSO, p. 19). Para Barroso o problema real, carente de solução, é “a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder legislativo” (BARROSO, p. 19).

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Legalidade e legitimidade do poder político

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Texto: BONAVIDES, Paulo. Legalidade e legitimidade do poder político. In: Ciência Política. 10ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000.

            O objetivo central do capítulo analisado é abordar a relação entre legalidade e legitimidade. Segundo o autor, o conceito de legalidade supõe que “todo poder estatal deverá atuar sempre de conformidade com as regras jurídicas vigentes” (BONAVIDES, 2000, p. 140). Quando um regime ou governo funciona segundo critérios legais, suas instituições e atos de autoridade são livres na medida em que observarem rigorosamente o ordenamento jurídico vigente. Consequentemente, o poder legal é aquele que é exercido “em harmonia com os princípios jurídicos” (BONAVIDES, 2000, p. 141).
            Por outro lado, Bonavides afirma que a noção de legitimidade é mais complexa, uma vez que traz questionamentos relativos à motivação ideológica do poder legal. Dessa forma, um regime é legítimo quando o poder é exercido em “conformidade com as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante” (BONAVIDES, 2000, p. 141).
            O princípio da legalidade nasceu em resposta à exigência da sociedade por regras mais estáveis e fundamentadas na razão. Segundo Montesquieu, citado por Benevides (2000, p. 142), a legalidade seria “sinônimo de liberdade” ao trazer para os governados um sentimento de proteção geral contra a arbitrariedade dos governantes. A partir do século XVIII, os governos passaram a ter sua legitimidade vinculada à observância desse princípio.
            Para Bonavides, dentro da teoria política, a relação entre legalidade e legitimidade pode ser estudada segundo quatro pontos de vista: “o histórico, o filosófico, o sociológico e o jurídico” (BONAVIDES, 2000, p.143). Uma análise histórica demonstra que nem sempre houve uma consciência da distinção entre legalidade e legitimidade. No início do século XIX, essa distinção se tornou clara para os franceses quando vivenciaram o conflito entre “a legitimidade histórica de uma dinastia restaurada e a legalidade vigente do Código napoleônico” (p. 143). Com Luis Felipe, os dois conceitos se separam ainda mais e a legalidade se impõe sobre a legitimidade. A corrente racionalista traz a noção de que só é legítimo o poder que é, primeiramente, legal. No entanto, a legalidade estrita trouxe algumas consequências desastrosas como, por exemplo, a ascensão “legal” de Hitler.
            Do ponto de vista filosófico, “a legitimidade repousa no plano [...] dos critérios axiológicos” (BONAVIDES, 2000, p. 145) e é analisada por meio de proposições filosóficas que buscam os fundamentos para o exercício do poder. Há um esforço de análise do poder, não como é exercido, mas como deveria ser.
            A compreensão sociológica da legitimidade “implica sempre numa teoria dominante do poder” (p. 146). Segundo Duverger, citado por Bonavides, os governados sempre vão reconhecer como legítimo o governo vinculado à teoria dominante do poder, naquele tempo e local. A legitimidade é vista, assim, como uma noção “puramente relativa e contingente” (DUVERGER, 1970, p. 39, apud BONAVIDES, 2000, 147).Seguindo esse raciocínio, Weber “faz que a legalidade repouse sobre três formas básicas de manifestação da legitimidade: a carismática, a tradicional e a legal” (BONAVIDES, 2000, p. 148). O poder carismático funda-se sobre atributos pessoais do chefe e tem natureza autoritária e imperativa. O poder tradicional repousa sobre a presumida santidade do líder e sobre a noção de privilégio, tendo um caráter sólido e estável. Já o poder legal, de natureza formal e regulamentada, sustenta-se sobre a noção de competência, vinculada à observância do estatuto.
            Benevides aborda o ponto de vista jurídico e apresenta a posição do jurista alemão Carl Schmitt, que “intenta demonstrar que a posse do poder legal em termos de legitimidade requer sempre uma presunção de juridicidade, de exequibilidade e obediência condicional e de preenchimento de cláusulas gerais” (BONAVIDES, 2000, p. 150). A essas exigências o autor acrescenta a necessidade da teoria constitucional e da filosofia do direito.
            Por fim o autor aborda o problema da finalidade do poder político, do fundamento para o exercício do poder e o problema de se determinar “se todo governo é legal e legítimo ao mesmo tempo (BONAVIDES, 2000, p. 152) e como se configura a dissociação dessas duas características dentro de um governo. O autor deu dois exemplos: o do governo de Petain, um governo legal e que se tornou ilegítimo quando abandonou os interesses do povo; e o do governo do general De Gaulle, um governo ilegal, mas legítimo. Em casos como esse último, de governos que emergem de revoluções, o autor afirma que “a legitimidade fundará então com o tempo a nova legalidade” (BONAVIDES, 2000, p. 152).
            Bonavides termina o capítulo apontando para o fato de que o tema proposto é pouco discutido pela literatura jurídica. Ele apresenta alguns autores que abordam a questão com mais profundidade. Ele adverte, enfim, que a importância dos questionamentos levantados se mostra justamente “nas horas de crise do poder” (BONAVIDES, 2000, p. 153).

Sistema Político Brasileiro

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Texto: CINTRA, Antônio Octávio. “O sistema de governo no Brasil”, em AVELAR, L.; CINTRA, A. O. (orgs.). Sistema Político Brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung; São Paulo: Fundação Unesp Ed, 2007, pp.59-79.
           
            Cintra aborda a questão da opção pelo sistema de governo presidencialista no Brasil de um ponto de vista histórico e analítico. Segundo o autor, o Brasil estava a caminho de se tornar uma monarquia parlamentarista quando ocorreu a proclamação da República. No entanto, a baixa participação política, o caráter oligárquico do sistema político de então e a “identificação entre parlamentarismo e monarquia” (CINTRA, 2007, p. 60) teriam sido alguns dos obstáculos para o sucesso de um possível sistema parlamentarista. Apesar disso, Cintra afirma que havia a presença de traços de competição política e “contestação pública”, ainda que insuficientes para a caracterização de um regime democrático.
            O autor avança apresentando dados históricos referentes às tentativas de implantação do Parlamentarismo no Brasil. Segundo Cintra, a preocupação com a formação de um governo presidencial forte e centralizado impedia que tal implantação ocorresse. No entanto, afirma que apesar desse aspecto centralizador, a República apresentava traços consociativos tais como: “o federalismo, o bicameralismo, o mandato presidencial de quatro anos (...), a representação proporcional (...), o multipartidarismo e as ‘grandes coalizões’” (CINTRA, 2007, p. 60). Esse sistema de compartilhamento de poder permitiu que o parlamentarismo permanecesse uma possibilidade. Com a renúncia de Jânio Quadros, o Ato Adicional institui o parlamentarismo em 1961, diminuindo o poder presidencial de João Goulart, eleito vice-presidente. A partir daí o parlamentarismo adquiriu um “estigma golpista” (CINTRA, 2007, p. 61), sendo rejeitado pela população no plebiscito de 1963. O Regime Militar de 1964 impossibilitava qualquer ideia de compartilhamento de poder. Com a redemocratização e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte houve uma nova tentativa, mas a proposta foi engavetada pelo então presidente Sarney, sendo adotado pela Assembleia Nacional  Constituinte o sistema presidencialista, com a realização de um plebiscito em 1993 para que a população opinasse a respeito do assunto. Para Cintra essa decisão “foi altamente questionável” (CINTRA, 2007, p. 63), dada a complexidade do assunto.
            Quanto às razões para a rejeição do sistema parlamentar, para o autor, acredita-se que a missão de desenvolver o país deve ser entregue a um líder carismático, cujo poder é concentrado e advindo da legitimação do voto popular. No entanto, no Brasil, esse líder “esbarraria no sistema político cheio de pontos de bloqueio à tomada de decisões e, sobretudo, à implementação delas” (CINTRA, 2007, p. 64). Esse sistema está baseado em elementos que acabariam por minar o poder da maioria, tais como congresso pluripartidário, legislativo bicameral, federalismo real, Judiciário descentralizado e Ministério Público autônomo.
            O autor passa à análise do sistema presidencial brasileiro. Citando Abranches (1988 apud CINTRA, 2007, p. 65), o autor aponta para as “bases de nossa tradição republicana”, quais sejam, o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo e a representação proporcional.  Segundo aquele mesmo autor, a estabilidade da nossa democracia tem sido ameaçada por um constate conflito entre Executivo e Legislativo, em cuja base estaria a “fragmentação na composição das forças políticas” (ABRANCHES, 1988, p. 8, apud CINTRA, 2007, p. 65). A tentativa de solução para essa problemática veio por meio do “presidencialismo de coalizão”, caracterizado por meio de alianças partidárias. Segundo Abranches, esse sistema seria instável por depender de uma harmonização sutil de interesses, ideologias e programas. Em nota, Cintra cita Abranches que afirma que essa política no Brasil “induz ao clientelismo e à patronagem”, apesar de ser “uma necessidade intrínseca de nosso sistema” (ABRANCHES, 2005, p. 44, apud CINTRA, 2007, p. 66).
            Cintra apresenta a síntese de Rennó a respeito das abordagens negativas do presidencialismo brasileiro. Num primeiro grupo estariam aqueles que criticam a capacidade governativa desse sistema. No segundo grupo, os que o vêem como um sistema que se move por meio basicamente da trocas de recursos. No terceiro grupo, que inclui o próprio Rennó, estariam aqueles que criticam a natureza relação entre Executivo e Legislativo. Segundo esses críticos, a forma como esse sistema foi desenhado não postula padrões claros de comportamento, oferecendo, de forma contraditória, incentivos “que ampliam em demasia a margem de manobra de governantes e dão muito espaço para que a capacidade individual dos governantes tenha papel central no gerenciamento da base de apoio no Congresso e na formação de maiorias” (PEREIRA, POWER, RENNÓ, 2005, apud CINTRA, 2007, p. 71). Para Rennó, o presidencialismo de coalizão não seria um projeto original e estável, mas uma tentativa de solução instável e temporária para essa conjuntura política caracterizada pelo multipartidarismo e pelo consociativismo do sistema como um todo.
            Cintra finaliza o capítulo apresentando uma análise do presidencialismo estadual e municipal. Segundo alguns dos autores apresentados por ele, no nível estadual haveria um ultrapresidencialismo caracterizado pela sobreposição dos governadores sobre as assembleias legislativas e os órgãos fiscalizadores. No entanto, Cintra cita os estudos de Fabiano Santos, sobre o Rio de Janeiro, que não confirmam a hipótese anterior, apresentando um Legislativo autônomo em relação ao Executivo estadual.

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