Redenção
Vozes do mar, das árvores, do
vento!
Quando às vezes, n’um sonho
doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso
tormento...
Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; salmo
misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do Mundo e o seu
lamento?
Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas
fugitivas.
E eu compreendo a vossa língua
estranha,
Vozes do mar, da selva, da
montanha...
Almas irmãs da minha, almas
cativas!
Antero de Quental
A
poesia, por mais subjetiva que se presuma ser, revela contradições que
pertencem ao mundo objetivo. Adorno ensina que o teor social da lírica advém
daquilo que há nela de espontâneo. A própria materialidade do poema já revela
contradições significativas. O poema em análise apresenta-se sob a forma de um
soneto, uma forma recorrente, clássica. O conteúdo de Redenção, no entanto, não é clássico: é
tipicamente moderno. Os versos decassílabos apresentam rimas consoantes,
interpoladas no primeiro e no segundo quarteto. Os dois primeiros versos de
cada terceto rimam entre si e há uma rima final entre os dois tercetos. Apesar
de toda essa técnica, de todo esse controle que se revela no trabalho de
metrificação dos versos (a maioria deles é de versos heróicos, acentuados na 6a
e na 10a sílabas), o conteúdo do poema revela um espírito
irrequieto, atormentado, às portas do descontrole.
Observa-se
o fenômeno da coliteração já na primeira estrofe, onde se percebe a alternância
simétrica entre as consoantes |z| e |s|. Esse fenômeno se repete nos três
primeiros versos do poema. A aparição reiterada do fonema sonoro, o |z|, cria a
impressão do zum
zum zum
característico do encontro de muitas vozes. Na segunda estrofe percebe-se a
aliteração do fonema surdo |s| no início da segunda palavra dos terceiro e
quarto versos, passando a impressão sonora típica de um suspiro.
Na
terceira estrofe do poema há coliteração das consoantes |p| e |b| em “espírito”
e “habita” e das consoantes |t| e |d| em “habita” e “imensidade”.
Percebe-se que há uma espécie de rima interna em que se dá a homofonia vocálica
do “i” e do “a”, com diversidade nas consoantes labiais, no primeiro caso, e
dentais no segundo. Entretanto essa divergência consonantal é suave, pois
trata-se apenas da presença ou ausência de sonoridade. Ao iniciar a terceira
estrofe com este efeito, o poeta cria um estranhamento, ou melhor, um despertar
no leitor. Esse estranhamento já estava sendo preparado desde o início da segunda
estrofe. O leitor, ao iniciar a leitura do poema, é de certa forma embalado
pelos fonemas aspirados abundantes na primeira estrofe. Na segunda estrofe, já
são introduzidos, em maior número, alguns fonemas oclusivos (|p|, |t|) que
começam a quebrar aquele efeito aveludado proposto anteriormente, entretanto,
não há um contraste forte, não há coliteração. O primeiro terceto cria um
choque ao iniciar-se com o embate dos fonemas surdos e sonoros em um único
verso. Com efeito, é nesse terceto que o eu-lírico põe de lado, por alguns
instantes, o lamento da natureza, para tratar do seu desejo de liberdade, um
desejo que se materializa em gestos abruptos, em atentados de fuga. Os próprios
verbos que finalizam o terceto encarnam a natureza abrupta do desejo de liberdade:
uma ânsia que agita e abala. Não se trata mais de um canto que embala ou de um
queixume que se materializa em forma de suspiro, mas o que o poeta passa a
narrar é o ímpeto fugitivo que se percebe sob a ânsia de liberdade que aproxima
a natureza e o homem, que torne a alma da natureza irmã da alma humana, assim
como o tormento, na primeira estrofe, igualava, por assim dizer, homem e
natureza. A última estrofe apresenta de forma reiterada fonemas nasais que dão
a impressão de continuidade: depois de passado o baque, o choque dos movimentos
que agitam e abalam as formas fugitivas, o eu-lírico pode enfim “compreender”,
e essa compreensão é dialógica. Ele pode enfim compreender a irmandade entre a
sua alma e a alma das vozes que vem cantando, uma irmandade que se perdeu ao
longo do processo civilizatório.
Toda
essa dinâmica interna ao poema deve-se à natureza da própria arte. A arte se
apresenta como uma promessa de reencontro do homem com a natureza, pois o
trabalho artístico (a poesia, “poier”, o fazer poético) não se submete a fins
pragmáticos. O homem, inicialmente, transformava a natureza por meio do
trabalho e, dessa forma, se transformava a si mesmo. Ele passou a dominar a
natureza por intermédio do trabalho, mas foi também por meio do trabalho que o
homem pode se libertar gradativamente, mas não completamente, da dependência
das condições naturais do seu ambiente. No entanto, com o advento da
modernidade (e principalmente do capitalismo) o trabalho se transformou em um
meio de dominação do próprio homem e perdeu o seu caráter libertador: o
trabalho moderno é, por assim dizer, um trabalho que escraviza. Entretanto,
ainda há um trabalho que liberta: o fazer poético.
O
trabalho é responsável pelo desligamento do homem da natureza, assim como a
linguagem: apenas o ser humano é dotado de linguagem (não entraremos na questão
da comunicação animal por tratar-se de um fenômeno diverso do da linguagem
humana, uma linguagem caracteristicamente verbal). Dessa forma, a linguagem
assim como o trabalho é um elemento que faz a mediação entre o homem e a
natureza. A “identificação do homem com a natureza” citada por Adorno[1]
(2003, p.70) só é possível mediante a mediação. Retomando a questão da arte
como uma promessa de retorno à natureza, percebemos que o fazer poético, o
trabalho artístico, confere ao homem o poder de humanizar a natureza. A ruptura
entre o homem e a natureza deveu-se justamente a um afastamento entre o humano
e o natural. O homem é dotado de humanidade, de uma natureza humana (por mais paradoxal que tal
expressão possa parecer dentro do contexto da discussão). A natureza, por sua
vez, não é humana, é selvagem, deve ser dominada. Ao humanizar a natureza, o
eu-lírico faz o caminho de volta, e esse é o único caminho que está disponível,
pois não lhe é possível “desumanizar-se”; para tanto teria de abrir mão da
linguagem, o que impossibilitaria o fazer poético. Dessa forma, o poeta (não se
trata da Antero de Quental, mas do poeta enquanto ofício, do sujeito poético
representando um sujeito coletivo) escolhe trilhar o único caminho que lhe foi
granjeado em busca do retorno à natureza, ele opta por buscar a promessa que a
arte lhe fez, uma promessa de reconciliação.
É
o que se percebe em Redenção, quando o eu-lírico dota de voz
o mar, as árvores e o vento. A humanização da natureza se dá de forma gradativa
ao longo do poema. No início a natureza é dotada de voz, um elemento humano,
mas que, em última análise, pode ser entendido como um elemento puramente
fisiológico. No entanto, essa voz se transmuta em canto, um canto que pode
embalar o sono atormentado do eu-lírico. Apesar de ser também uma capacidade
humana, a de cantar (os pássaros também cantam, mas a definição do canto é algo
humano, pois se não fosse a racionalidade humana o canto dos pássaros seria puro
som), pode-se dizer que ainda se trata de uma habilidade fisiológica, física.
Porém, o que dizer do fato de a natureza possuir (“vosso”) tormento? A partir
desse ponto, a natureza passa a ser dotada de características tipicamente
humanas, do campo das emoções e, mais à frente, do campo das volições: ela
passa a ter vontade. Na segunda estrofe, a natureza é apresentada como capaz de
lamentar-se, de queixar-se de seu tormento por meio de suspiros. A partir da
terceira estrofe ela não apenas queixa-se passivamente, ela deseja, ela
“anseia” libertar-se e essa ânsia é cruel e violenta, tão violenta que agita e
abala “as formas fugitivas”. É a partir dessa constatação, dessa “quase visão”,
que o eu-lírico passa a compreender a linguagem do mar, das árvores que habitam as selvas, do vento que preenche a montanha; ele compreende que a identidade entre o
homem e a natureza deve-se justamente àquilo que os separou, eis a contradição
maior: deve-se à dominação. Eis que agora ambos são cativos, cativos de um
processo irreversível, o processo de dominação da natureza pelo homem, do homem
pelo homem e, em um futuro próximo (se nos for possível sugerir tão
escatológico cenário), uma dominação do homem pela natureza.
É
nesse ponto que se percebe que há uma armadilha na promessa a que nos referimos
anteriormente, a promessa da arte de uma reconciliação entre o homem e a
natureza. Essa armadilha estava já sugerida na primeira estrofe do poema,
quando o eu-lírico delimita o espaço de seu poema: o canto que ouve, ele o ouve
em sonho. A
reconciliação não é possível, assim como não era possível para Portugal retomar
o seu lugar de glória dentro do cenário europeu. Tão irreversível quanto o
processo de dominação da natureza pelo homem é o capitalismo. Portugal não
poderia reconciliar-se com os seus anos de ouro, não poderia retomar o seu
lugar de prestígio na Europa, pois o seu papel dentro da mesma modernidade que
trouxe o capitalismo era um papel subalterno, o papel de periferia. O atraso de
Portugal era a sua forma de participar da modernidade capitalista, uma
modernidade que traz como característica a desintegração, a degradação, por
mais que a globalização pareça justamente o contrário. A poesia se mostra como
o espaço por excelência para a expressão de todas essas contradições, de toda
essa tensão. Por tal motivo é que Adorno sugere que o fundamento de toda lírica
individual seja “uma corrente subterrânea coletiva” (2003, p.77)[2].
Por mais subjetivo que pareça ser o poema, por mais alienado que ele venha a se
mostrar, diante de uma leitura que se recuse a ser superficial ou ingênua, ele
revelará um conjunto de contradições, toda aquela tensão para a qual não havia
espaço no calor dos movimentos sociais.