RESUMO
O
presente artigo apresenta uma análise do conceito de intervenção mínima no
Direito Penal, em sua relação com o desenvolvimento da Justiça Restaurativa.
Apresentar-se-ão os conceitos de ambas, quando e como surgiram. Além disso,
será investigada a forma como a aplicação do princípio da intervenção mínima
influenciou no surgimento da Justiça Restaurativa e como o desenvolvimento
dessa tem possibilitado a aplicação cada vez mais efetiva daquele princípio. Na
conclusão será apresentada uma breve análise crítica da relação entre
intervenção mínima e Justiça Restaurativa, em que será defendida a hipótese de
que tal relação está na base na realização efetiva dos direitos fundamentais
que caracterizam o Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave:
intervenção mínima, Direito Penal, Justiça Restaurativa, Estado Democrático de
Direito.
ABSTRACT
This article presents an analysis of the concept of minimum intervention in
Criminal Law, in its relation with the development of Restorative Justice. We
will present both concepts and when and how they emerged. In addition, it will
be investigated how the application of the principle of minimum intervention
influenced the emergence of Restorative Justice and how its development has
made possible the effective application of that principle. In conclusion, a
brief critical analysis of the relationship between minimum intervention and
Restorative Justice will be presented, in which we will defend the hypothesis
that this relationship is in the basis of the effective realization of the
fundamental rights that characterize the Democratic Rule of Law.
Key words:
minimum intervention, Criminal Law, Restorative Justice, Democratic Rule of
Law.
INTRODUÇÃO
O presente
artigo tem por objetivo analisar o surgimento do princípio da intervenção
mínima e sua relação com o desenvolvimento da Justiça Restaurativa. Em um
primeiro momento, será analisado o conceito de intervenção mínima, o contexto
histórico em que tal princípio surgiu e como se deu o seu desenvolvimento ao
longo do tempo.
Posteriormente,
abordaremos o conceito de Justiça Restaurativa, a conjuntura na qual ela
surgiu, quais são suas peculiaridades quando comparada com a Justiça Penal
comum e quais são as perspectivas que lhe são apresentadas na atualidade dentro
do Sistema Penal brasileiro.
No
terceiro tópico, buscaremos demonstrar a influência recíproca que se dá entre
os dois conceitos, analisando a forma como o princípio da intervenção mínima do
Direito Penal influenciou no surgimento da Justiça Restaurativa e, por outro
lado, como a efetivação e ampliação das técnicas e práticas da Justiça
Restaurativa tem tornado cada vez mais eficaz a aplicação do princípio da
intervenção mínima.
Como
conclusão, com base nos conceitos e nas relações apresentadas ao longo do
texto, será feita uma exposição crítica a respeito do assunto, em que será
defendida a hipótese de que aquela relação de interdependência recíproca entre
a intervenção mínima do Direito Penal e a Justiça Restaurativa tem
possibilitado a realização efetiva dos Direitos Fundamentais que dão forma e
existência ao Estado Democrático de Direito. Por fim, serão brevemente
analisados os desafios enfrentados pela Justiça Restaurativa, especialmente a
resistência da sociedade em considerar outras formas de justiça além da justiça
retributiva. Defenderemos a hipótese de que tal resistência tem origem na falta
de reconhecimento, sendo esse conceito acessado dentro da Teoria do
Reconhecimento de Axel Honneth (2003, apud SAAVEDRA, SOBOTTKA, 2008).
1 INTERVENÇÃO
MÍNIMA
Durante o
Estado Absolutista, o Direito Penal caracterizou-se por uma intervenção estatal
exacerbada na vida dos indivíduos, limitando sua liberdade de forma excessiva e
aplicando penas de caráter cruel e desumano. O Direito Penal do Antigo Regime
baseava-se em uma legislação arbitrária que privilegiava os castigos corporais,
a pena de morte, a exposição pública e o suplício. A natureza degradante das
penas aplicadas visava a “expiação” e os juízes possuíam uma liberdade ampla
para julgar de forma arbitrária, o que na maioria das vezes resultava na
aplicação de penas conforme a classe social dos condenados.
Assim, na
segunda metade do século XVIII, inspirados pelos ideais iluministas, diversos
pensadores começaram a defender uma reforma do Direito Penal, condenando
abertamente as arbitrariedades que o caracterizavam e a crueldade e degradação
com que as leis eram formuladas e aplicadas. Esses pensadores defendiam a
racionalização do processo punitivo e a extinção daquelas penas que afetavam a dignidade
humana dos indivíduos. Bitencourt (2014), em relação ao pensamento iluminista e
humanitário que começava a dominar os círculos intelectuais, afirma que:
A pena deve ser proporcional ao crime,
devendo-se levar em consideração, quando imposta, as circunstâncias pessoais do
delinquente, seu grau de malícia e, sobretudo, produzir a impressão de ser
eficaz sobre o espírito dos homens, sendo, ao mesmo tempo, a menos cruel para o
corpo do delinquente. (BITENCOURT, 2014, p. 82)
Ao lado de
filósofos de grande renome, como Rousseau e Montesquieu, levantaram-se
pensadores do campo do Direito Penal, como Beccaria, Bentham e Howard, para
citar alguns, que inauguraram o Direito Penal Moderno. A obra de Beccaria, “Dos delitos e das penas”, é
representativa desse período, por apresentar os pressupostos do Direito Penal
segundo uma concepção liberal do Estado e do Direito. Beccaria formula um
conjunto de princípios que se opõem à arbitrariedade da Justiça Penal do Antigo
Regime: os princípios da legalidade (que geraria certeza e igualdade jurídica),
da humanidade, da proporcionalidade e da utilidade da pena, cuja finalidade não
é mais a tortura ou o suplício, mas a prevenção de novos delitos (BITENCOURT,
2014, p. 49).
A Escola
Clássica, como ficou conhecida essa linha de pensamento que buscava a
humanização do Direito Penal, costuma ser dividida pelos doutrinadores, em dois
períodos: um combativo e um construtivo. No primeiro período é possível
distinguir uma atitude crítica por parte dos teóricos que buscam desconstruir
aquele sistema penal arbitrário, negando e combatendo as suas ideias basilares.
No segundo período, por sua vez, identifica-se uma postura positiva, criadora,
por meio da qual os pensadores objetivam reformular o Direito Penal com base
nos princípios, valores e ideias iluministas e humanitários (ANDRADE, 2015, p.
54, 55).
A partir
da codificação, a Escola Clássica passa de uma atitude combativa, para uma
atitude construtiva que terá como fruto o moderno Direito Penal liberal. A
partir desse ímpeto construtivo, os autores clássicos procuraram elaborar
sistematicamente os conceitos de crime, responsabilidade penal e pena, assim
como a própria conceituação positiva do Direito Penal em si, considerado de
forma sistemática.
Dessa forma, Andrade, ao tratar da consolidação
da dogmática penal-jurídica em seu livro “A
Ilusão da Segurança Jurídica” afirma que a Escola Clássica “empreenderá uma
vigorosa racionalização do poder punitivo em nome, precisamente, da necessidade
de garantir o indivíduo contra toda intervenção estatal arbitrária” (2015, p.
55).
É dentro desse contexto de reforma iluminista
do controle penal que surgem os princípios limitadores do Direito Penal, com o
objetivo claro de conter o impulso punitivo do Estado e garantir o respeito à
liberdade e à dignidade dos cidadãos. Bitencourt afirma que esses princípios
podem ser atualmente chamados de “Princípios
Fundamentais de Direito Penal de um Estado Social e Democrático de Direito”
(2014, p. 49, grifo no original).
Entre os princípios reguladores que informam o
Direito Penal atualmente, podemos citar os princípios da legalidade e da
reserva legal, o princípio da intervenção mínima (sobre o qual manteremos o
foco a seguir), o princípio da fragmentariedade (que está estritamente
relacionado com o anterior), o princípio da irretroatividade da lei penal, o
princípio da insignificância, o princípio da proporcionalidade, o princípio da
humanidade e o princípio da ofensividade, para citar alguns.
O
princípio da intervenção mínima é conhecido também como ultima ratio, pois significa que o Direito Penal deve ser o “último
recurso” a ser aplicado com vistas à manutenção da ordem pública. Os princípios
da legalidade e da reserva legal são eficazes do ponto de vista formal, ao
limitar o poder punitivo do Estado determinando que não há crime, nem pena, sem
que haja uma lei anterior que os defina. No entanto, esses princípios, por si
sós, não são suficientes para conter a vociferante vontade punitiva do Estado,
pois bastaria que uma determinada pena cruel fosse prevista, ou que dada
conduta, mesmo que inofensiva, fosse tipificada, para que o Estado se
imiscuísse nas liberdades individuais, sempre que assim desejasse (BITENCOURT,
2014, p. 53).
Por tais
motivos é que o princípio da intervenção mínima se mostra tão importante.
Segundo tal principio, uma conduta só pode ser criminalizada se representar uma
ameaça ou ofensa a bens jurídicos relevantes. Não somente isso, mesmo que se
identifique a lesividade de determinada conduta, faz-se necessário investigar
se outras formas de controle social não seriam suficientes para a prevenção do
dano ao bem jurídico sob ataque. Se há outras formas de sanções que podem
aplicar-se com tal objetivo, a criminalização da conduta deve ser afastada.
O Direito
Penal, dessa forma, deve ser o último recurso de que se faz uso, entrando em
ação somente quando todas as outras possibilidades falharem ou forem
insuficientes. Por isso é que o princípio da intervenção mínima também é
conhecido como princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Claus Roxin (apud
BITENCOURT, 2014, p. 54), explica a importância desse princípio ao afirmar que
“o castigo penal coloca em perigo a existência social do afetado, se o situa à
margem da sociedade e, com isso, produz também um dano social”.
Andrade partilha desse ponto de vista, ao expor
o poder devastador que o Direito Penal tem sobre a vida do indivíduo que passa
pela condenação. A autora explica como a condenação opera como uma marca
indelével sobre a vida do condenado. Segundo a labelling approach (como veio a ser conhecida essa teoria), a
criminalidade não existe enquanto realidade ontológico, ela passa a existir
quando a etiqueta de delinquente é posicionada sobre o criminoso, por meio
daqueles que detêm o poder de punir. Aí estariam presentes os fenômenos da
criminalização primária (que ocorre no nascimento da lei penal) e da
criminalização secundária (que tem lugar durante a aplicação da lei penal) (ANDRADE, 2015, p. 208). Dadas as graves consequências sociais que se originam da
aplicação da lei penal, compreende-se a razão pela qual ela deve ser a ultima ratio.
No
entanto, Bitencourt constata que o princípio da intervenção mínima tem sido
relativamente ignorado a partir do início do século XIX. Segundo o autor
Os legisladores contemporâneos, nas mais
diversas partes do mundo, têm abusado da criminalização e da penalização, em
franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o
Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidativa
diante da ‘inflação legislativa’ reinante nos ordenamentos positivos.
(BITENCOURT, 2014, p. 55).
É
nesse contexto que iniciativas como a da Justiça Restaurativa têm surgido, com
a clara intenção de renovar aqueles princípios e valores humanitários. Como
veremos a seguir, a Justiça Restaurativa possibilita a solução de conflitos sem
a necessidade da aplicação de penas graves a situações que podem ser resolvidas
por meios menos gravosos.
2 JUSTIÇA
RESTAURATIVA
Alguns
autores atribuem a criação do termo Justiça Restaurativa a Alber Eglash, que,
em seu artigo Beyond Restitution:
Creative Restitution (1977), diferenciou três tipos de resposta ao crime:
respostas fundamentadas na ideia de punição (retributivas), aquelas voltadas para
a reeducação e recuperação (distributivas) e, por fim, aquelas respostas que
buscam a reparação e reconstrução das pessoas e dos relacionamentos danificados
pelo crime.
A
Justiça Restaurativa pode ser considerada, um movimento social relativamente
recente. Os primeiros procedimentos com características restaurativas datam da
década de 70. Segundo Daniel Silva Achutti (2016), o conjunto de práticas que
podem ser agrupadas sob a classificação de Justiça Restaurativa é tão amplo que
se torna muito difícil delinear-se uma definição clara de tal movimento.
O que se
percebe, no entanto, é que a Justiça Restaurativa nasceu de uma insatisfação
com relação ao sistema de justiça tradicional. As estatísticas comprovavam, por
um lado, a discriminação racial e social em todas as fases dos processos
judiciais e, por outro, o fracasso total do sistema prisional, que se tornou
incapaz tanto de coibir a criminalidade, como de recuperar os condenados.
Abordemos inicialmente, a questão da
discriminação racial e social. Alguns autores, como Andrade (2015, p. 278),
apontam para a seletividade, não somente na aplicação da lei, mas também no
processo legislativo. Para essa autora, a discriminação tem início na
tipificação de determinadas condutas que apontam para determinados grupos
sociais. Andrade demonstra que esse fenômeno de seletividade criminal tem
relação com um processo de desigualdade social mais amplo característico das
sociedades capitalistas. A autora afirma que a criminalidade é uma realidade
social criada por meio do processo de etiquetamento, como expusemos
anteriormente, que ocorre, primeiramente na criação das leis penais, e
posteriormente, por meio da atividade judicial.
Sendo
assim, o sistema penal se revela seletivo na distribuição da criminalidade, que
se mostra condizente com a desigual distribuição de poder e propriedade na
sociedade capitalista. Sua função latente se revela na “conservação e
reprodução das relações de desigualdades” (ANDRADE, 2015, p. 282). Dentro desse
raciocínio, o sistema penal estaria programado para violar a todos os
princípios garantidores do Direito Penal, transformando a própria ideia
original do Direito Penal em utopia.
Tal conjuntura criou um sentimento de
frustração que levou ao surgimento de diversos estudos e iniciativas em busca
de alternativas a esse modelo de justiça retributiva. A Justiça Restaurativa
surgiu nesse contexto de insatisfação e inquietação, na busca da “construção de
uma política criminal radicalmente diferente, voltada para uma drástica redução
da violência na forma de administrar as situações problemáticas” (ACHUTTI,
2016, p. 54).
Uma das primeiras iniciativas identificadas
como pertencentes à Justiça Restaurativa ocorreu na década de 70, no Canadá, no
estado de Ontário. Conforme Howard Zehr (2008), dois jovens haviam sido
condenados por atos de vandalismo contra 22 propriedades da cidade de Elmira.
Um oficial de condicional, Mark Yantzi, solicitou ao juiz do caso que
permitisse aos jovens se encontrarem com as vítimas de seus atos a fim de
ressarci-las por seus danos. Surpreendentemente, quando o juiz proferiu a
sentença, determinou que os encontros presenciais ocorressem e que, durante
eles, fossem negociadas as indenizações. Em alguns meses, 20 vítimas foram
indenizadas (as duas que faltaram haviam se mudado).
Zehr explica que atualmente existem mais de 100
programas nos Estados Unidos que se utilizam desse tipo de mediação entre
vítima e ofensor. Além dos Estados Unidos, outros países como Inglaterra,
Canadá, Alemanha, França, Holanda e Finlândia possuem programas semelhantes. O
autor afirma que
(...) considerados em seu conjunto todos
esses programas oferecem uma base ampla de experiências úteis a uma abordagem
que combina elementos de mediação e justiça reparadora dentro da estrutura da
justiça criminal. Um grande leque de programas de resolução de conflitos
apareceu nos últimos tempos, alguns dos quais tratam de casos com envolvimento
atual ou potencial com a justiça criminal. Também estes oferecem ricas
experiências com as quais podemos aprender” (ZEHR, 2008, p.150-151)
Percebe-se, dessa forma, que a Justiça
Restaurativa forma um "grande leque" de programas e iniciativas que
podem divergir significativamente em suas características. Em uma tentativa de
construir uma ideia mais global dessa forma alternativa de justiça, Achutti
apresenta uma coletânea de conceituações apresentadas por diversos autores.
Entre esses autores, ele cita Johnstone e Van Ness, que afirmam que o que une
as diversas iniciativas caracterizadas como pertencentes a esse “movimento
social global” (JOHNSTONE, VAN NESS, 2007, apud ACHUTTI, 2016, p. 59) é o
objetivo que está na base da Justiça Restaurativa: operar uma transformação na
forma como a sociedade concebe e reage ao crime.
Dada a diversidade de programas e iniciativas que
podem ser classificados dentro desse “leque” denominado Justiça Restaurativa,
Johnstone e Van Ness (2007, p. 6-8, apud ACHUTTI, 2016, p. 63) elencaram três
aspectos que, apesar de dificultarem a formulação de um conceito uno,
contribuem para a compreensão da natureza dessa forma alternativa de justiça.
Os autores afirmam que o conceito de Justiça Restaurativa está sujeito a
avaliações científicas, é internamente complexo e encontra-se aberto a novos
desenvolvimentos.
O segundo aspecto citado por Johnstone e Van
Ness, a saber, a complexidade interna do conceito de Justiça Restaurativa é
particularmente interessante, pois explora a diversidade de que se reveste esse
fenômeno jurídico-social. Os autores explicam que, para que uma prática seja
classificada como restaurativa, deverá apresentar uma ou mais das
características a seguir:
(i) o
processo, de natureza informal, pelo qual o crime deverá ser abordado deve
envolver vítimas, ofensores e demais personagens que tenham sido afetados por
ele (a comunidade, por exemplo). Além disso, deve levar à compreensão dos danos
causados e ao levantamento de hipóteses de reparação desses danos por parte do
ofensor.
(ii) como deverá obrigatoriamente envolver
todos as pessoas afetadas pelo delito, a ênfase deve recair no papel de cada uma
delas dentro do contexto do delito;
(iii) “os mediadores ou facilitadores deverão
se esforçar para que a resposta ao problema seja o menos estigmatizante e
punitiva possível ao ofensor, de forma que este possa reconhecer o dano sem
receios e se responsabilizar pela sua reparação” (ACHUTTI, 2016, p. 63-64);
(iv) o processo e os resultados que dele
advierem, devem ser orientados por valores que garantam uma interação social
pacífica e proveitosa, privilegiando-se valores como respeito e inclusão e
evitando-se dar lugar à violência e à humilhação, por exemplo, cabendo aos
mediadores a busca por tal cenário;
v) a vítima deve receber uma atenção especial,
sendo reconhecidos os danos que lhe foram causados e buscando-se atender às suas
necessidades;
(vi) o processo como um todo deve enfatizar a
reparação dos relacionamentos que foram abalados pela conduta delituosa.
3 JUSTIÇA
RESTAURATIVA E PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA
Como vimos
anteriormente, o foco da Justiça Restaurativa é a reparação do dano causado
pelo ofensor à vítima por meio do ato ilícito que cometeu. O delito, dessa
forma, não é visto puramente como um fato jurídico (BRANDÃO, 2010), como uma
violação à letra da lei. O crime é considerado como uma violação ao compromisso
de cidadania que orienta as relações em sociedade. Às suas características de
tipicidade e antijuridicidade, acrescenta-se (e salienta-se), dessa forma, um
aspecto interpessoal, relativo à violação daqueles compromissos sociais. Por
meio de suas práticas, a Justiça Restaurativa busca levar o ofensor a
reconhecer os danos causados à vítima, suas necessidades e as possibilidades de
reparação desses danos (materiais, morais e/ou emocionais).
Dentro
desse raciocínio, a aplicação do Direito Penal é inadequada para gerar os
resultados esperados pela prática restaurativa. Como veremos a seguir, o
encarceramento não leva, necessariamente, à responsabilização do ofensor e ao
reconhecimento da necessidade de reparação. A aplicação ampla e irrestrita de
penas restritivas de liberdade viola, dessa forma, o princípio da intervenção
mínima do Direito Penal, pois o que se tem comprovado por meio de diversas
pesquisas mais recentes é que há alternativas ao encarceramento que podem
apresentar resultados mais desejáveis.
O modelo tradicional de justiça desconsidera a
figura da vítima. O foco da justiça criminal retributiva é o ofensor, é a
aplicação de penalidades previstas legalmente. Zehr demonstra que a vítima é
afetada profundamente pelo crime e a justiça, da forma como tem sido operada,
não tem oferecido as condições necessárias para a recuperação, muito menos para
a reparação do dano. A vítima assiste ao processo judicial como uma espectadora
e não como uma participante. Ao fim, sua necessidade de vivenciar uma "experiência
de justiça" (ZEHR, 2008, p. 27) é completamente ignorada. Nas palavras do
autor
O crime é devastador porque perturba dois
pressupostos fundamentais sobre os quais calcamos nossa vida: a crença de que o
mundo é um lugar ordenado e dotado de significado, e a crença na autonomia
pessoal. Esses dois pressupostos são essenciais para a inteireza do nosso ser.
(ZEHR, 2008, p. 24).
Além disso, Zehr explica que o direito penal
falha também na responsabilização do próprio ofensor. Ele não é levado a considerar
os danos que causou a outro ser humano, muito menos a refletir sobre as
possibilidades de reparar ou indenizar a vítima por tais danos. Como nos lembra
Zehr, as sociedades ocidentais contemporâneas privilegiam a prisão como forma
de punir o delinquente. O princípio da intervenção mínima é frequentemente
esquecido e o encarceramento, que deveria ser o último recurso a ser cogitado
(devendo sua aplicação, inclusive, ser justificada pelo juiz), é privilegiado.
O que o juiz se sente obrigado a justificar é sua opção por formas alternativas
de justiça, quando é o caso. Surpreendentemente, "a prisão é o primeiro em
vez de ser o último recurso, e não apenas para crimes violentos" (ZEHR,
2008, p. 34).
Da mesma forma, Zehr demonstra que o
encarceramento, como resposta ao dano causado pelo ofensor à vítima, é uma
forma indireta (e ineficaz) de responsabilização, pois o ofensor não é capaz de
construir um vínculo entre seu ato e as consequências geradas por ele. Assim, a
prisão se mostra ineficaz justamente naquilo para o que ela foi criada: a
responsabilização do delinquente.
Se o
encarceramento não gera responsabilização, ele não será capaz de recuperar esse
condenado, de restaurar suas habilidades sociais. Isso se torna ainda mais
claro quando se considera o ambiente prisional, a dinâmica dos relacionamentos
interpessoais que lá se constroem e a ausência de responsabilidade pelo próprio
sustento, que gerará um padrão de dependência na vida desse ofensor. Mais uma
vez, a prisão falha, agora em seu objetivo de devolver à sociedade um cidadão
recuperado, apto a reintegrar-se de forma responsável à comunidade.
A Justiça
Restaurativa traz para o centro a figura da vítima e do dano que lhe foi
causado. Quanto ao ofensor, sua recuperação só será possível por meio da
responsabilização efetiva por seus atos. Zehr afirma que
A verdadeira responsabilidade, portanto,
inclui a compreensão das consequências humanas advindas de nossos atos -
encarar aquilo que fizemos e a pessoa a quem o fizemos. Mas a verdadeira
responsabilidade vai um passo além. Ela envolve igualmente assumir a
responsabilidade pelos resultados de nossas ações. Os ofensores deveriam ser
estimulados a ajudar a decidir o que será feito para corrigir a situação, e
depois incentivados a tomar as medidas para reparar os danos. (ZEHR, 2008, p.
41).
Diante dessas
considerações, as práticas de Justiça Restaurativa têm sido cada vez estudadas
e seus resultados avaliados. Como vimos anteriormente, diversos países ao redor
do mundo têm aplicado seus pressupostos, ampliando os programas restaurativos e
reduzindo a resposta retributiva ao crime. No entanto, conforme nos ensina
Delano Câncio Brandão,
A Justiça restaurativa primeiramente aflorou nos países
que adotam o Commom Law, isso porque em tais países o
princípio da oportunidade inerente ao sistema de justiça é compatível com o
ideal restaurativo. No caso do Brasil, porém, onde vigora o princípio da
indisponibilidade da ação penal pública, não há essa abertura para a adoção de
medidas alternativas. (BRANDÃO, 2010)
No entanto, com o advento da Constituição Federal de 1988
e da Lei 9.099/1995, a aplicação da Justiça Restaurativa tornou-se uma
possibilidade nos casos onde é possível identificar-se o princípio da
oportunidade. Esses seriam aqueles casos em que a iniciativa da ação penal é
privada e cabe ao ofendido provocar a ação jurisdicional. Nessas hipóteses, os
envolvidos podem optar pela prática restaurativa como uma opção à via judicial.
Brandão elenca as possibilidades disponibilizadas pela Lei 9.099/1995, que
“prevê a composição civil (art.74 e parágrafo único), a
transação penal (art.76) e a suspensão condicional do processo (art.89. Nos
termos da citada lei, tanto na fase preliminar quanto durante o procedimento
contencioso é possível a derivação para o processo restaurativo, sendo que, nos
crimes de ação penal privada e pública condicionada, há a possibilidade de despenalização por extinção da punibilidade
através da composição civil e, nos casos de ação penal pública,
utilizando-se o encontro para, além de outros aspectos da solução do conflito,
se discutir uma sugestão de pena alternativa adequada, no contexto do diálogo restaurativo. Disso resulta que
a experiência restaurativa pode ser aplicada na conciliação e na transação
penal, a partir do espaço de consenso por ela introduzido, que permite o
diálogo restaurativo, inclusive ampliado para contemplar outros conteúdos – emocionais, por exemplo – trazidos
pelas partes e que podem ser colocados. (BRANDÃO, 2010) (grifo nosso).
Brandão ainda acrescenta uma outra
possibilidade de aplicação de práticas restaurativas: o Estatuto do Idoso (Lei
10.741/2003), em seu artigo 94, permite a aplicação de procedimentos
restaurativos previstos na Lei 9.099/1995 a crimes contra idosos sujeitos a
penas restritivas de liberdade inferiores a 4 anos.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal tem sido
reconhecido no Brasil por sua proatividade na aplicação de técnicas
restaurativas. Em junho de 2004, instituiu uma comissão cujo objetivo era
estudar a adaptabilidade da Justiça Restaurativa ao contexto do Distrito
Federal e também desenvolver um projeto piloto na circunscrição do Núcleo
Bandeirante, que foi inaugurado em 2005 e aplicava-se a infrações de menor
potencial ofensivo.
Em 2013, o TJDFT instituiu o Centro Judiciário de Solução
de Conflitos e Cidadania do Programa Justiça Restaurativa. Em publicação
encontrada no site do Tribunal, a Justiça Restaurativa é vista
(...) como um novo modelo de resposta, possibilitando a aproximação
entre as instituições formais de Justiça Criminal e o controle informal, por meio da participação ativa e interessada de todos os envolvidos em conflitos de
natureza criminal, incluindo a própria comunidade. Assim, o sentido de justiça
passa a significar a restauração dos
traumas decorrentes do crime, o que ocorre pelo processo dialógico que se
estabelece entre os interessados, os quais ocupam nesse modelo um espaço de
participação e compreensão. (TJDFT, 2017) (grifo nosso).
Percebe-se,
assim, que a Justiça Brasileira tem reconhecido o valor da Justiça Restaurativa
e, pouco a pouco, tem ampliado o seu campo de atuação. No entanto, como
apontado acima, o princípio da indisponibilidade da ação penal é um fator
restritivo para o avanço das práticas restaurativas. O próprio desconhecimento
do assunto por parte da sociedade é um obstáculo imenso que impede que tais
práticas sejam reconhecidas como respostas legítimas ao crime.
CONCLUSÃO
O
princípio da intervenção mínima é um dos princípios mais importantes do Direito
Penal. Como vimos no início do presente artigo, o princípio da legalidade e da
reserva legal não são suficientes para limitar o poder estatal e garantir as
liberdades individuais dos cidadãos contra o Estado. O princípio da intervenção
mínima restringe a atividade legiferante à tipificação de condutas que
representem uma real ameaça ou ofensa a bens jurídicos relevantes. Além disso,
deve-se verificar se há outras formas de controle social que poderiam ser
suficientes para a prevenção do dano ao bem jurídico sob ataque, ou, constatado
o delito, para a reparação do dano causado.
É aqui que
se insere a Justiça Restaurativa. Ela é uma resposta eficiente ao princípio da
intervenção mínima, ao promover a busca pela solução de conflitos fora do
âmbito judicial, por meio de práticas dialógicas, voluntárias e reparadoras. Os
procedimentos restaurativos representam a humanização da justiça e possibilitam
a busca da restauração de vidas e relacionamentos. Consequentemente, a relação
que se estabeleceu entre intervenção mínima e Justiça Restaurativa é de
fundamental importância para a concretização dos objetivos do Estado
Democrático de Direito.
A Justiça Restaurativa possibilita a
concretização de garantias fundamentais e a efetivação de direitos fundamentais
básicos. É evidente o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana,
princípio centralizador de nosso ordenamento jurídico, alçado a fundamento da
República Federativa do Brasil, no inciso III, do artigo 1o de nossa
Carta Magna. A justiça tradicional fracassou em sua função original de
proporcionar segurança jurídica e responsabilização penal. Conforme demonstrado
anteriormente, o encarceramento se mostrou triplamente ineficiente: no seu
objetivo de responsabilização do condenado, de recuperação e reintegração do
mesmo e de coibição do crime.
Por meio
das práticas restaurativas, as vítimas podem ser ouvidas, seus traumas podem
ser tratados, sua cura, como afirma Zehr, pode ser efetivada, pois há a
possibilidade de reparação, de restituição e até mesmo de perdão. Enquanto a
justiça retributiva quebra o vínculo entre o delito e suas consequências, a
Justiça Restaurativa liga-os diretamente, ao levar o ofensor a compreender a
dimensão dos seus atos e as possibilidades de reparação que lhe estão disponíveis,
possibilitando a efetivação da justiça. Aqui, cabe reproduzir as palavras de
Howard Zehr, pois elas resumem o verdadeiro conceito de justiça:
Em vez de definir a justiça como
retribuição, nós a definiremos como restauração. Se o crime é um ato lesivo, a
justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração – ao
invés de mais violação – deveriam contrabalancear o dano advindo do crime. É
impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a verdadeira justiça
teria como objetivo oferecer um contexto no qual esse processo pode começar.
(ZEHR, 2008, p. 176).
Por fim, é
necessário assumir que a aplicação dos ideais e procedimentos da Justiça
Restaurativa não é tão simples como possa parecer. Como apontamos
anteriormente, ela enfrenta diversos obstáculos. Um deles é o fato de que a
participação dos envolvidos deve ser voluntária, ou seja, eles devem querer a
restauração, por assim, dizer. O grande desafio, assim, é modificar a
mentalidade de uma sociedade que foi ensinada, doutrinada e conduzida a ver na justiça
retributiva, mais especificamente no encarceramento, a resposta adequada para a
lesão aos seus direitos. O caminho para essa mudança passa pela educação, pela
informação e pelo respeito.
Axel
Honneth em sua Teoria do Reconhecimento, afirma que um indivíduo só é capaz de
atos de solidariedade quanto está inserido em um contexto de relações
simétricas, no qual todos os envolvidos têm a possibilidade de autorrealização.
Isso só é possível quando o próprio
indivíduo se reconhece de forma positiva, quando ele desenvolve autoconfiança.
Saavedra e Sobottka (2008) afirmam que “esse desenvolvimento primário da
capacidade de autoconfiança é visto por Honneth (2003, p. 168ss) como a base
das relações sociais entre adultos. Honneth vai além e sustenta que o nível do
reconhecimento do amor é o núcleo fundamental de toda a moralidade” (SAAVEDRA,
SOBOTTKA, 2008, p. 11).
A primeira esfera em que o indivíduo experiencia
o reconhecimento é a do amor e ela é
violada já na primeira infância, por meio de maus tratos, pelo ataque à
integridade psíquica do indivíduo. Percebe-se que “não é a integridade física
que é violada, mas sim o autorrespeito (selbstverständliche Respektierung) que cada pessoa possui de seu corpo e que, segundo
Winnicott, é adquirido por meio do processo intersubjetivo de socialização
originado através da dedicação afetiva
(HONNETH, 2003, p. 214ss)” (SAAVEDRA, SOBOTTKA, 2008, p. 15, grifo nosso). A
análise da teoria do reconhecimento de Axel Honneth foge aos limites do
presente trabalho, no entanto, ela oferece conceitos extremamente pertinentes
para a discussão a respeito das práticas restaurativas de justiça.
Somente quando nos reconhecemos humanamente
dignos podemos compreender o verdadeiro valor da humanidade. Somente assim
estaremos aptos a respeitar a humanidade do outro e defende-la até onde for
possível. Por mais anticientífico que possa parecer, o amor expresso nos
relacionamentos interpessoais, principalmente no seio da família (e na primeira
infância), é o elemento principal para a formação de uma sociedade justa,
solidária e socialmente íntegra. Só é capaz de perdoar, quem encontra dentro de
si uma força que desafia a lógica da retribuição. Essa força é o amor.
BIBLIOGRAFIA
ACHUTTI,
D. S. Justiça restaurativa e
abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de
conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.
ANDRADE, V. R. de. A
ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do
controle penal. 3 ed.; rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.
BITENCOURT,
C. R. Tratado de direito penal:
parte geral 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
BRANDÃO, D. C. Justiça Restaurativa no Brasil: Conceito,
críticas e vantagens de um modelo alternativo de resolução de conflitos. In:
Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 77, jun 2010. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7946>. Acesso em: 23 out. 2017.
SAAVEDRA,
G. A., SOBOTTKA, E. A. Introdução à teoria do reconhecimento de Axel Honneth.
In: Civitas, Porto Alegre, v. 8, n.
1, p. 9-18, jan.-abr. 2008. Disponível em <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/4319/6864>. Acesso em: mar. 2017.
TJDFT. A Justiça Restaurativa – TJDFT.
Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2017. Disponível em: < http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-vice-presidencia/nupecon/justica-restaurativa/o-que-e-a-justica-restaurativa>.
Acesso em: 23 out. 2017.
ZEHR,
H. Trocando as lentes: um novo foco
sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.
Nenhum comentário:
Postar um comentário