Rembrandt, 1659 |
INTRODUÇÃO
Todo líder
cristão aprende desde o início que o seu papel é servir a Deus e a seu povo.
Muitas vezes, com o intuito de fazer o seu melhor, o líder acaba centralizando
a gestão da Igreja totalmente em si, esquecendo-se da falibilidade inevitável
dos projetos solitários. Um líder centralizador corre mais riscos de render-se
à ambição, à sede de poder, à corrupção e ao fracasso. Um líder que trabalha em
equipe, por outro lado, divide obrigações, sucessos e dificuldades. No final,
ele sabe que tudo que é feito por sua equipe é para glorificar a Deus.
A ideia do
trabalho em equipe está bastante difundida nos dias atuais. No entanto, a
tendência à centralização está sempre presente e se revela em pequenos aspectos
da liderança. O estudo da Palavra de Deus nos capacita a identificar os riscos
de uma gestão “totalitarista” e nos auxilia na adoção de uma postura que
valorize a noção de hierarquia vinculada ao trabalho em equipe.
O capítulo 18
de Êxodos nos mostra como Moisés, ao acatar os conselhos de seu sogro, abandonou
um sistema de liderança centralizador para exercer uma gestão descentralizada,
fundada no trabalho em equipe. Ao estudar o texto bíblico, objetivamos
identificar: 1) as características maléficas do primeiro sistema e suas
conseqüências para o líder e para o povo; 2) como foi o processo de mudança
para o sistema descentralizado; 3) os benefícios do novo sistema para o líder e
para o povo de Deus.
Por fim,
buscaremos no Novo Testamento evidências do valor que Deus dá ao trabalho em
equipe.
I - Moisés e seu sistema de liderança centralizador
Características do modelo centralizador:
1)
Solidão (v. 14)“porque te assentas só?”: o líder solitário não tem ninguém com
quem dividir preocupações ou alegrias. É uma “corda” que se rompe facilmente
(Ec 4.9-12).
2)
Indisponibilidade (v.13) “de manhã até a tarde”: Moisés tinha o seu dia totalmente ocupado
por atividades que poderiam ser realizadas por outras pessoas. Não podia
descansar ou dedicar-se à sua família.
3)
Ineficiência (v. 13): mesmo se esgotando, Moisés
não conseguia atender a todos. O povo ficava “em pé” aguardando todo o dia para ser atendido.
4)
“Personalização” da fé (v. 15) “este povo vem a mim para consultar a Deus“: o povo queria consultar a Deus e
acreditava que só Moisés poderia representá-los diante de Deus. O líder
centralizador corre o sério risco de ser “idolatrado” pelos fiéis ou de
considerar-se a si mesmo um ídolo esquecendo-se que o que importa é que Deus
seja engrandecido (Jô 3.30).
Consequências de uma liderança solitária:
1)
“Não é bom o que
fazes” (v. 17): Jetro era uma pessoa que observava de fora. Alguns
estudiosos sugerem que ele era um sacerdote pagão e que sua conversão se deu em
Êxodos 18 quando ele ouviu os testemunhos do que Deus havia feito por meio de
Moisés. Podemos tirar algumas lições daqui:
a)
Deus usa quem Ele quer e quando Ele quer: o fato de
Jetro não ser um membro daquele grupo há tanto tempo quanto os outros não
impediu Deus de usá-lo e Moisés não foi preconceituoso, ele acatou os conselhos
de seu sogro.
b)
Deus usa nossas habilidades pessoais: Deus usou
habilidades específicas de Jetro para auxiliar Moisés. As pessoas trazem
consigo habilidades que podem ser úteis na obra de Deus (Bezalel: Ex 35.30-33;
a sogra de Simão: Mc 1.30; Débora: Jz 4.4-9; José: Gn 41:38-40), desde que elas
compreendam que tudo o que fazem deve ser para a honra e glória do Senhor (I Co
10. 31).
c)
Humildade para receber críticas de fora: muitas vezes
pessoas que não estão envolvidas diretamente na situação têm um ponto de vista
que o líder ainda não havia considerado. É necessário humildade para acatar
conselhos externos. O Senhor se encarrega de conduzir os humildes (Sl 25.9) e
lhes concede graça (Pv 3.34).
2)
Fadiga, stress, exaustão e envelhecimento precoce do
líder: “Totalmente desfalecerás” (v.
18)
Nós somos
humanos e Deus nos fez com limites fisiológicos específicos criados por Ele.
Ultrapassar esses limites por falta de sabedoria é afrontar a Deus e às suas
escolhas a respeito de nossa constituição física e psicológica. É claro que
Deus vê a intenção do coração e valoriza a atitude daqueles líderes que agem
como Paulo, que afirmou “De bom grado
gastarei e me deixarei gastar pelas vossas almas” (II Co 12.15). No
entanto, até Paulo sempre trabalhou em equipe, sob a orientação do próprio
Deus: em suas viagens, sempre levava um companheiro com quem compartilhava a
liderança (Barnabé, At 13.2; João Marcos, At 13.13; Silas, At 15.40; Timóteo,
At 16.1-3). Como Deus conhecia o coração de Moisés, enviou-lhe um conselheiro
quando já estava a ponto de “desfalecer”. No hebraico, o verbo teria o sentido
de “envelhecer precocemente, exaurir-se”. Quem envelhece precocemente deixa a
obra pela metade.
3)
Esgotamento da congregação: “... assim tu como este povo que está contigo” (v. 18)
Moisés não
percebia que seu stress e exaustão estavam prejudicando a obra de Deus. O povo
estava se esgotando da manhã até a noite para ter suas necessidades atendidas e
mesmo que Moisés fizesse o máximo de sua capacidade não conseguiria atender a
todos.
4)
“... este negócio
é mui difícil para ti. Tu só não o podes fazer.” (v. 18)
Moisés não
conseguia ver a impossibilidade daquele trabalho. Foi necessária uma visão
externa para trazer-lhe um senso de realidade.
II - Mudando para um sistema de liderança descentralizado
Passos para a adoção de uma liderança compartilhada
1)
Busca de orientação: “Ouve agora a minha voz, eu te aconselharei, e Deus será contigo” (v.
19)
“... com muitos conselheiros se obtém a
vitória” (Pv 24.6 NVI). Deus, em Sua Palavra, sempre valorizou o
aconselhamento. Ele não procura líderes autossuficientes, isolados ou
independentes. Tais pessoas vivem à beira do fracasso. O primeiro passo para um
líder que deseja adotar uma liderança compartilhada é ouvir os conselhos que
chegam até ele, consultar a Deus sobre sua validade e aplicá-los no que for
conveniente. Muitas vezes, acreditamos que detalhes práticos, triviais ou
cotidianos não influenciam a obra ou não
interessam a Deus. Mas tais detalhes podem fazer a diferença entre ter ou não a
presença a Deus conosco (“... e Deus será
contigo”).
2) Fazer
indiretamente e interceder: “Sê tu pelo
povo diante de Deus” (v. 19)
Jetro sugeriu
que Moisés representasse o povo perante Deus e fosse representado perante o
povo por meio dos outros líderes com quem passaria a compartilhar a liderança. “O líder que faz tudo está dizendo que
ninguém pode fazer o que ele faz, mas isto não é verdade”[1].
A glória do líder será menor se ele delegar tarefas, mas o sucesso da obra
será maior, pois liderados ocupados têm menos tempo para criticar.
3)
Ensinar, orientar e treinar: “... declara-lhes tu os estatutos e as leis e faze-lhes saber o caminho
em que devem andar e a obra que devem fazer” (v. 20)
Jetro aqui
orienta Moisés a tomar para si a responsabilidade pelo ensino do povo como um
todo. Por meio do ensino, Moisés estaria também treinando os novos líderes.
Podemos identificar três componentes deste treinamento:
a)
“... declara-lhes
os estatutos e as leis...”: mostra-lhes que eles têm uma base sobre a qual
agir, um referencial. Não podem agir como quiserem. (Mt 28.30)
b) “... faze-lhes saber o caminho em que devem
andar...”: quem não é orientado erra o caminho diversas vezes antes de
acertar. Erros podem ter consequências graves. O líder conhece o caminho e está nele. Por isso pode indicá-lo aos
liderados, acompanhando-os no caminho.
c) “... e a obra que devem fazer”: quando
uma função é delegada, ela deve ser bem explicada para que o delegado saiba o
que se espera dele. No serviço público existe o “ato de delegação”. É
interessante observar o que consta desse ato: 1) quem delega (a quem o delegado
deve se reportar), 2) quem recebe a delegação (para que a pessoa não fuja de
suas obrigações), 3) a tarefa delegada (para que não extrapole ou cometa abuso
de poder) e 4) o prazo da delegação (para que saiba quanto tempo tem para
cumprir a tarefa).
4)
Formar uma equipe eficaz: “E tu, dentre todo o povo procura homens capazes, tementes a Deus,
homens de verdade, que aborreçam a avareza...” (v. 21)
Jetro aconselhou
Moisés a observar algumas características ao procurar por auxiliadores. Tais
homens deveriam ser:
a)
capazes: as
pessoas apresentam habilidades pessoais específicas. É sempre bom observar o
potencial dos liderados, o perfil de cada um. Muitas vezes a pessoa parece não
ter uma habilidade específica, mas pode ser trabalhada com base em seu
potencial e pode desenvolver a habilidade ao entrar em ação. A inércia é
inimiga do crescimento.
b)
Tementes a Deus:
“O temor do Senhor é o princípio da
sabedoria...” (Pv. 9.10). “Nem sempre pessoas com perfil de liderança temem
a Deus”[2].
Pode acontecer de uma pessoa ser nova na fé e ainda não compreender que a obra
é do Senhor. Tal pessoa pode procurar autopromover-se por meio do serviço
cristão. Daí a importância do ensino e da orientação. O temor do Senhor pode
ser aprendido: muitos só ouviram falar de Deus, precisam conhecê-lo (Jó 42.5).
c)
Homens de verdade:
o compromisso com a verdade é fundamental na obra de Deus. É inadmissível que
um líder cristão se envolva com mentiras. Um dos sinais dos fins dos tempos é o
surgimento de falsos líderes que proferem mentiras justamente por terem suas
mentes cauterizadas, por terem perdido o temor do Senhor (I Tm 4.2).
d)
Que aborreçam a
avareza: o amor ao dinheiro é um sentimento que afasta qualquer cristão de
Deus. Um líder que ama mais ao dinheiro do que a Deus é um líder subornável,
corrompível e inapto para o serviço cristão. No caso de Moisés, os líderes
escolhidos por ele atuariam como juízes, daí a importância de escolher líderes
que não se deixariam comprar. Nos dias atuais, essa dificuldade é ainda maior,
pois vivemos em uma sociedade altamente capitalista em que não são poucos os
casos em que a fé tem sido tratada como mercadoria. É necessário que os líderes
saibam lidar com o “poder” inerente à sua função gestora sem contudo sucumbir à
ganância e à mentira. (Jo 27.8; Ef 5.3)
Benefícios de uma liderança compartilhada
1) Saúde
física, espiritual e mental do líder “assim,
a ti mesmo te aliviarás da carga e eles a levarão contigo... poderás, então,
subsistir” (v. 22, 23): “Sozinho, ninguém é capaz de cuidar do rebanho do
Senhor”[3].
Ao compartilhar a liderança, o líder abre espaço em sua agenda para cuidar de
si e dos seus e ainda dá oportunidade para outros trabalharem na obra de Deus,
desenvolvendo suas habilidades.
2) Liderança
mais eficiente (processo) e mais eficaz (resultado):
a) maior
abrangência da administração e atendimento pleno das necessidades do grupo “para que julguem esse povo em todo o tempo”
(v. 22): agora Moisés poderia estar indiretamente em contato com todo o povo,
em todo o tempo, por meio de seus representantes.
b) sistema
de hierarquia “põe-nos sobre eles por
chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinquenta e chefes de dez” (v. 21).
Um sistema descentralizado de liderança não significa falta de hierarquia. Moisés
não deixou de ser o líder daquele grupo. “a
submissão é melhor do que a gordura de carneiros” (I Sm 15:22 NVI).
c) especialização
das funções segundo habilidades “toda
causa grave trarão a ti, mas toda causa pequena eles mesmos julgarão” (v.
22): o Senhor nos criou com habilidades específicas. Ao delegar tarefas, o
líder permite que alguém faça algo melhor do que ele mesmo faria.
3) Tranquilidade
para os liderados “todo este povo tornará
em paz ao seu lugar” (v. 23): ao ter suas necessidades atendidas de forma
mais rápida, o povo poderia retornar às suas atividades em paz, ou seja, teriam
a tranquilidade necessária para desempenhar suas tarefas diárias.
CONCLUSÃO
O conceito de descentralização
pode parecer inadequado à primeira vista, pois acreditamos que a obra de Deus
é, na verdade, centralizada em Deus. Afinal, “dEle, por Ele e para Ele são todas as coisas” (Rm 11.36). No
entanto, mesmo sendo o centro de tudo, Ele nos permitiu participar de seu
projeto ao nos delegar tarefas, ao nos conceder “ministérios”. A palavra
“ministério” traz consigo um sentido mais amplo do que o que temos normalmente
associado a ela: o sentido de serviço. Dessa forma, todos recebemos um
ministério de Deus, um serviço a ser executado.
Os líderes não
podem agir como se fossem o centro da obra de Deus, pois essa posição já está
ocupada pelo Senhor. Deus é o dono da obra, os líderes são “despenseiros”,
encarregados da administração e distribuição e, “ora, o que se requer desses encarregados [despenseiros] é que sejam
fiéis [dignos de confiança do seu Senhor]” (I Co 4.2 NVI/AMP). Um dos
indícios da fidelidade de um encarregado é que não cobice a posição de seu
superior. Jesus, mesmo sendo Deus, não “teve
por usurpação ser igual a Deus” (Fp 2.6). A atitude de Lúcifer foi
totalmente oposta à de Jesus: ao receber uma delegação de Deus, não se
conformou; quis subir “acima das estrelas
de Deus” e ser “semelhante ao
Altíssimo” (Is 14.13,14).
“O título aplicado
a Lúcifer em Isaías 14:12 reflete a posição que ele tinha uma
vez no Céu como líder dos anjos. Mas, sendo um ser criado, sua posição sempre
seria inferior à de seu Criador, Cristo. João 1:1-3; Efés. 3:9; Heb. 1:2. Lúcifer não quis reconhecer este fato.
Não importa quanto Deus tenha dado a Lúcifer, obviamente não foi suficiente.
Ele queria mais. E era um ser que desde o começo foi criado perfeito! Que
advertência a queda de Lúcifer deve ter sobre nós – pecadores, egoístas e
defeituosos desde o começo – sobre o perigo da exaltação própria, do orgulho e
da cobiça, especialmente quando surgem de modo muito sutil?[4]”
Há um conceito
na física que pode ilustrar bem tudo o que foi estudado nessa lição: o conceito
de força resultante. A aplicação de uma força sobre um corpo pode gerar uma
força resultante centrípeta ou uma (pseudo[5])
força resultante centrífuga. Se aplicarmos esses conceitos à distribuição de
tarefas na obra de Deus, no primeiro caso, teremos um líder de cujas ações
resulta uma força centrípeta, que atrai para si todas as responsabilidades da
igreja ao recusar-se a distribuir funções. A tendência dessa administração é a
redução de sua abrangência. Afinal, não há expansão, há retração, contração. No
segundo caso, temos um líder cujas atitudes gerariam uma força centrífuga: ele
distribui funções, delega tarefas e responsabilidades. Aqui, a expansão é
inevitável, pois o raio de alcance é tão grande quanto a capacidade desse líder
de delegar sem, contudo, perder o contato com seus delegados. Esse contato é
garantido por meio da manutenção da hierarquia, um conceito que jamais poderá
ser abandonado dentro da obra de Deus, pois é inerente à vida cristã. Jesus
é o maior exemplo que poderíamos ter:
ele tornou possível a expansão do evangelho por meio da delegação de um
ministério aos seus discípulos (Lc 10.1-12) e ainda orientou seus discípulos a
repetir o processo, fazendo novos discípulos (Mt 28.19). Foi dessa forma que a
Palavra de Deus chegou até nós.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CORRADI, Wagner et al.
Fundamentos de Física I. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2008
BÍBLIA SAGRADA. Versões: Nova Versão
Internacional (NVI), Amplified Bible (AMP), Nova Tradução na Linguagem de Hoje
(NTLH), Almeida Revista e Corrigida (ARC). Disponíveis em <https://www.bible.com/pt-BR>
Estudo Dirigido – O grande conflito cósmico.
Estudo I – Guerra no céu. <http://www.bibliaonline.net/estudos/?acao=tema&estudo=10&licao=1>
VIEIRA, Rev. Samuel. VELHAS E
NOVAS BASES DE LIDERANÇA. 2009. Disponível em ipbanapolis.org.br>
[4] <http://www.bibliaonline.net/estudos/?acao=tema&estudo=10&licao=1>
sem informação de autoria.
[5] O entendimento atual na física é o de que “não existe
força centrífuga” (CORRADI, 2008, p. 251). A impressão que temos ao olhar de
fora é uma ilusão, pois na verdade, na ausência da força centrípeta, o objeto
seguiria uma trajetória retilínea. “Os
objetos abandonam as trajetórias curvas não devido à presença de algum tipo de
"força centrífuga" responsável por tirá-los das trajetórias
curvilíneas, mas sim porque as forças centrípetas necessárias aos movimentos
curvilíneos por algum motivo não se fazem mais presentes.” (<http://pt.wikipedia.org/wiki/For%C3%A7a_inercial_centr%C3%ADfuga>)
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