Por Lorena Brandizzi
A natureza épica do poema de José Basílio
da Gama, intitulado O Uraguay, tem
sido assunto para muita discussão na teoria literária. Serão apresentados a
seguir alguns dos argumentos que, de certa forma, servem de base para a negação
do status de epopéia à obra de
Basílio, e alguns dos pontos explicitados por outros autores que levam a um
questionamento do caráter anti-épico do poema.
Basílio da Gama foge à tradição
épica ao iniciar seu poema O Uraguay com
a descrição do que restou de uma batalha há pouco terminada. Ao aplicar a
técnica da antecipação, o autor atrai a atenção do leitor para o desenrolar do
texto, uma vez que a descrição inicial não oferece respostas, mas apenas uma
fotografia sombria do resultado de uma guerra.
Fumám
ainda nas desertas praias
Lagos
de sangue tépidos, e impuros,
Em que
ondeam cadáveres despidos,
Pastos
de corvos. Duram inda nos valles
O rouco
som da irada artilheria.
Os
versos que se seguem àqueles cinco primeiros trazem a invocação e a proposição,
as quais deveriam abrir o poema, como é comum na poesia épica. Na invocação, o
aedo pede à Musa que juntamente com ele celebre aquele “que o povo rude
subjugou do Uraguay”.
Musa,
honremos o heróe, que o povo rude
Subjugou
do Uraguay, e no seu sangue
Dos
decretos reaes lavou a affronta.
Ai!
Tanto custas, ambição de império!
Percebe-se
que tais versos não trazem a grandiloqüência característica das grandes
epopéias e finalizar a invocação com um lamento e uma crítica à ambição de
poder é algo que destoa da tradição épica.
A
abertura desse poema de certa forma sinaliza aspectos da composição do poema em si. Durante toda a
extensão da obra elementos novos e elementos tradicionais coexistirão. Basílio
da Gama construiu seu poema conjugando aspectos épicos, líricos, trágicos e satíricos,
e não procurou distanciar-se do evento, como se exige de um autor épico, pelo
contrário, suas intervenções são claras e freqüentes. Outros aspectos que
caracterizam o poema são, segundo Vania Pinheiro Chaves (2000, p.75) sua
plasticidade, musicalidade e simplicidade de expressão. São claras também no
poema as manifestações de apreço ou simpatia pelos vencidos, por parte do
autor.
Quanto
ao afastamento de O Uraguay de um status
de epopéia, Afrânio Peixoto, na Nota Preliminar à Ediçao de 1941 de O Uraguay pela Academia Brasileira de
Letras, define o poema como mal composto quanto à técnica literária. Ele diz
ainda que não há nexo no enredo e exemplifica sua afirmação lembrando a figura
do Padre Balda que, sendo o chefe moral e militar do índios, sem motivo algum
prende Cacambo e logo depois causa sua morte oferecendo-lhe um “licor
desconhecido” (Canto III). Peixoto questiona se o motivo por trás de tal
incompreensível ato seria possíveis ciúmes de Lindóia por parte do Padre. Logo
depois ele lembra que o referido Padre nenhum ressentimento teve da morte da
jovem e nem o sepultamento de seu corpo permitiu que fosse feito (Canto IV).
Indifferente
admira o caso acerbo
Da
estranha novidade alli trazido
O duro
Balda; e os índios, que se achavam
Corre
co` a vista e os ânimos observa.
Quanto
póde o temor! Seccou-se a um tempo
Em mais
de um rosto o pranto, e em mais de um peito
Morrêram
suffocados os suspiros.
Ficou
desamparada na espessura,
E
exposta ás feras e ás famintas aves,
Sem que
alguém se atrevesse a honrar seu corpo
De
poucas flores e piedosa terra.
No
entanto, quanto a esse argumento cabe uma análise mais atenciosa do enredo. Na
batalha descrita no Canto II, logo após a conversa entre o general Gomes Freire
e os índios Cacambo e Cepé, o autor apresenta a personagem de Baldetta, como
sendo um jovem “presumido e nescio”. Diz ainda que tal índio, de alguma forma,
era favorecido pelos santos padres.
Impertinente,
e de família escura,
Mas que
tinha o favor dos santos padres.
Contam,
não sei se é certo, que o tivera
A
estéril mãi por orações de Balda.
Chamaram-no
Baldetta por memória.
Na nota do próprio autor ao
verso que apresenta o nome do índio, Basílio lança com tom de ironia a
possibilidade de que Baldetta fosse filho do próprio Padre.
“Os jesuitas da America não eram tão
escrupulosos como affectavam ser os da Europa. Era bem fácil distinguir nas
aldeias as Indias, que gozavam do favor dos padres. Da mesma sorte se
distinguiam muito bem, entre os outros, os rapazes da família. Na Asia era o
mesmo. Leia-se a carta do bispo Nankim a Benedicto XIV.”
Acontece
que no início do Canto IV, estando já morto Cacambo, o Padre Balda intenta dar
Lindóia por esposa ao “seu Baldetta”. O que se percebe é que a atitude do Padre
ao prender e matar Cacambo não teria sido inteiramente desmotivada como sugere
Afrânio Peixoto.
Os
argumentos de Peixoto, no entanto, não se resumem ao episódio da morte de
Cacambo. Ele ainda afirma que quanto à ficção “a matéria narrada não daria um
conto medíocre (op. cit., p. XXIX) e quanto aos combates, “não há nenhum
vislumbre de epopéia”. Para ele o êxito que O
Uraguay alcançou foi anti-jesuítico.
Por
outro lado, o próprio Afrânio Peixoto cita o elogio de Ameida Garret como “a
mais bela condecoração (...) de O Uraguay”
(op. cit. p. XXXV). Garret elogia as descrições das cenas naturais, a linguagem
utilizada pelo autor que empregou “versos naturais sem ser prosaicos”, ao mesmo
tempo em que soube se utilizar de versos sublimes nos momentos adequados.
Garret também lamenta a pequena extensão e a falta do tom grandiloqüente do
poema e salienta que se o poeta tivesse sido mais cuidadoso em relação a esses
fatores, talvez algumas imperfeições latentes desapareceriam[1].
Antônio
Cândido diz ser O Uraguay uma obra
disfarçada de epopéia, pois quase tudo o que traz a afastaria daquele gênero.
Ele lembra que o autor quebrou a norma da distância épica ao escolher um tema
reduzido e atual. Outros aspectos salientados por Cândido são: a extensão do
poema, pequena quando comparada ao que exigia de uma epopéia e os episódios
burlescos e satíricos, que segundo ele apenas aproximam a obra do poema
herói-cômico, a “antiepopéia deliberada”[2].
José
Veríssimo partilha da opinião de que a proximidade no tempo do evento narrado
prejudicou o trabalho do autor e lhe dificultou “vestir” sua obra de roupagens
épicas.
Pouco adequado a um poema épico segundo os
moldes clássicos era o assumpto de Basilio da Gama (...). Tal thema, sobre
insufficiente e ingrato, parece daria apenas um episodio em poema de maior
vulto. Faltava ao poeta o recuo necessário no tempo para uma idealização do
acontecimento cujos actores ainda viviam ou apenas há pouco tinham morrido.
Havia, pois, a epopéia de ser uma simples narração histórica em verso de
sucesso recentíssimo, a que as circunstâncias políticas davam desmesurado
relevo (...). Tinha este [o poema] fatalmente, pelas condições da sua composição,
de lhe sair limitado no tempo e no espaço, e, sobretudo, despido das feições e
roupagens propriamente épicas.[3]
Quanto
à norma da distância épica há teóricos que discordam do ponto de vista de
Antônio Cândido e de José Veríssimo. Vânia Pinheiro Chaves (2000, p. 49)
reconhece que O Uraguay não é aceito
como epopéia por grande parte dos críticos, diz a autora: “Definir O Uraguay como ‘epopéia brasílica’ é
assumir posição contrária à de uma parcela significativa de seus receptores,
que, com diversos argumentos, lhe têm recusado quer o caráter brasileiro, quer
a qualificação de epopéia ou a própria natureza de poesia épica.”
Vânia,
no entanto, comenta a respeito de vários aspectos que têm sido utilizados como
argumentos a favor do caráter “anti-épico” de O Uraguay. Quanto à
distância épica ela assume que a escolha por Basílio de um tema dele tão
contemporâneo diverge da opção feita pela maior parte dos autores épicos. No
entanto, ela argumenta que na Antiguidade greco-latina as epopéias eram
produzidas por aedos cujo conhecimento do fato narrado costumava ser mais ou
menos direto, sendo, portanto, a criação da obra contemporânea dos eventos
narrados. A autora ainda exemplifica seu argumento citando Farsália, a obra com a qual Lucano relatou a luta entre César e
Pompeu, e as curtas epopéias de Claudiano a respeito dos feitos de heróis
coevos. A autora ainda defende a escolha do tema atual citando Os Lusíadas e La
Araucana, exemplos europeus de epopéias com temas mais ou
menos contemporâneos de seus autores.
Vânia
ainda cita La Henriade, de
Voltaire[4],
na qual o autor recomenda a escolha de um assunto moderno. Vânia defende que
“sobrepõe-se à multiplicidade de formas um modelo típico de epopéia clássica”,
ela sugere traços que podem não estar presentes em sua totalidade nos textos
concretos. Entre esses traços ela inclui:
-
“Ação em geral de natureza guerreira e de importância
nacional;”
-
“Personagens configurando seres excepcionais por
seu nascimento, valor guerreiro, patriotismo, sentimento religioso, por dotes
intelectuais ou virtudes morais (modelos de comportamento humano de determinada
época e sociedade);”
-
“Início in
media res;”
-
“Propósito de intervenção social, política ou
religiosa.”[5]
Percebe-se que esses
traços estão presentes em
O Uraguay. O caráter
bélico da ação descrita está claro na descrição dos combates. Já no Canto II o
poeta descreve o ambiente da guerra:
Fez a
trombeta o som da guerra. Ouviram
Aqueles
montes pela vez primeira
O som
da caixa portuguesa; e viram
Pela
primeira vez aquelles ares
Desenroladas
as reaes bandeiras.
Gomes Freire de Andrade é
apresentado como a personagem central da história. Nas notas Complementares de
Rodolfo Garcia à Edição Comemorativa do Segundo Centenário anotada por este e
por Afrânio Peixoto e Osvaldo Braga. Garcia comenta a nota de Basilio ao verso
que apresenta Gomes Freire como “o grande Andrade”. Garcia diz que Gomes Freire
foi nomeado primeiro e principal comissário régio para negociar o Tratado de
Limites da América do Sul e que em fevereiro de 1752 ele deixou o Rio de
Janeiro em direção ao local do conflito. Garcia ainda confirma a posição de
herói conferida a Gomes Freire por Basilio:
É assas conhecida a campanha que foi
obrigado a empreender, e que a excessiva imaginação do poeta erigiu em epopéia,
com Gomes Freire por herói[6]
Além
de seus dotes intelectuais, Basilio apresenta Gomes Freire como um herói
misericordioso. Quando o general alertado por Menezes sobre a grande quantidade
de índios que possivelmente enfrentarão na “larga e vantajosa collina” e este
sugere que somente armas poderosas poderão sujeita-los, Gomes Freire demonstra
a sua predisposição a um contato menos violento.
Torna-lhe
o general: - Tentem-se os meios
De
brandura e de amor; se isto não basta,
Farei a
meu prazer o ultimo esforço.
O início in media res é outro traço claro já desde o primeiro canto, quando
Basilio inicia o poema descrevendo o ambiente de uma batalha já terminada, mas
que ainda conserva “o rouco som da irada artilheria”.
Quanto ao propósito da obra, o
que se percebe é um caráter preponderantemente político, pois como afirmado por
Afrânio Peixoto, o êxito do poema de Basílio foi anti-jesuítico. Vânia Pinheiro
Chaves explicita bem esse propósito político de O Uraguay:
“Escrito e publicado num período em que a
Companhia de Jesus era objeto de acerba discussão em toda a Europa e até no
Brasil, O Uraguay entra, aberta e decididamente, na campanha contra os
inacianos; esta é, aliás, a faceta mais ostensiva de sua ideologia e a que mais
cedo é identificada por seus receptores. A ‘antipatia’ pelos jesuítas está
largamente formulada e se apresenta de diversos modos nos vários planos da
construção de O Uraguay. O ataque à ordem criada por Inácio de Loiola é o
objeto principal das notas que acompanham o poema e está metaforicamente
construído quer na epígrafe, quer no soneto que o precedem (...)”[7]
Dessa
forma, é possível distinguir alguns dos traços que caracterizam um modelo de
epopéia clássica que parecem sobrepor-se às múltiplas realizações desse gênero
literário. Cabe salientar que esses não são os únicos traços que garantem à
obra de Basílio uma aproximação do modelo épico. Longe de comportar todos os
argumentos a favor ou mesmo contra a caracterização do poema basiliano, o
presente ensaio apenas explicitou alguns dos pontos citados por autores que
defendem a natureza épica de O Uraguay.
BIBLIOGRAFIA
CÂNDIDO, Antônio. “A dois séculos d`O Uraguay”
in Vários Escritos. São Paulo, 1995, p. 134.
CHAVES, Vânia Pinheiro. “O despertar de um gênio
brasileiro: Uma leitura de O Uraguay
de José Basílio da Gama”. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2000, p. 57.
GARCIA, Rodolfo. “Notas Complementares às
anotações do poeta ao seu poema”, in
O
Uraguay - Edicao Comemorativa do Segundo Centenário, Publicações da
Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1941, p. 114.
GARRET, Almeida, “Bosquejo da história da poesia
e língua portuguesa” in Obras, vol.
XXIV, Lisboa, 1877, pp. 104-105.
VERÍSSIMO, José. “Basílio da Gama: Sua vida e
suas obras” in Obras Poéticas de José Basílio da Gama. Rio de Janeiro: Editora
Livraria Garnier, 1971, p.68.
VOLTAIRE, F.M.A. “Idée de La
Henriade”, 1840.
Imagem: Disponível em . Acesso em 14/02/2017.
[1]
Almeida Garret – Bosquejo da história da poesia e língua
portuguesa, in Obras, vol. XXIV,
Lisboa, 1877, pp. 104-105.
[2]
CÂNDIDO, Antônio. “A dois séculos
d`O Uraguay” in Vários Escritos. São Paulo, 1995, p. 134.
[3]
VERÍSSIMO,
José. “Basílio da Gama: Sua vida e suas obras” in Obras Poéticas de José
Basílio da Gama. Rio de Janeiro: Editora Livraria Garnier, 1971, p.68.
[4]
VOLTAIRE, F.M.A. “Idée de La
Henriade”, 1840.
[5]
CHAVES, Vânia Pinheiro. “O
despertar de um gênio brasileiro: Uma leitura de O Uraguay de José Basílio da Gama”. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2000, p. 57.
[6]
GARCIA,
Rodolfo. “Notas Complementares às anotações do poeta ao seu poema”, in
O
Uraguay - Edicao Comemorativa do Segundo Centenário, Publicações da
Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 1941, p. 114.
[7]
CHAVES, Vânia Pinheiro. “O
despertar de um gênio brasileiro: Uma leitura de O Uraguay de José Basílio da Gama”. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2000, p. 222.
Olá, Lorena!
ResponderExcluirInteressante! Você leu O Uraguay? As críticas negativas sempre me afastaram, mas seu ensaio me deu vontade de ler agora :)
Até!
Sim. Foi uma leitura interessante. É claro que não se compara a uma Odisséia, mas é bastante interessante! :)
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