sexta-feira, 24 de março de 2023

A norma culta e o português jurídico


 

Por que os textos oficiais devem obedecer às regras gramaticais da língua portuguesa?

Uma análise do inciso V do art. 5º da Portaria Conjunta 91 de 01/09/21 do TJDFT.

 

Por Lorena Brandizzi

 

 

O primeiro passo para a produção de qualquer texto é a definição clara de seu destinatário. O texto deve ser escrito de forma que a pessoa que vá lê-lo “consiga” lê-lo. Não é uma atitude coerente escrever um texto deliberadamente obscuro e incompreensível para o leitor, seja qual for a justificativa que se utilize para isso (rebuscamento, estética, erudição ou tecnicismo).

Precisamos levar em consideração que a linguagem utilizada em textos jurídicos é uma linguagem técnica. Isso, no entanto, não impede que ela seja uma linguagem clara, coesa, objetiva e coerente. A necessidade de clareza, por sua vez, não é um empecilho para a correção gramatical.

                Quando tratamos da comunicação no contexto do serviço público, a correção gramatical não é um fim em si mesma. A linguagem deve ser abordada como uma ferramenta para o alcance dos objetivos da Justiça. Por essa razão, não se sustenta mais o argumento de que a linguagem jurídica deva ser mais “elevada”, rebuscada, diferente da linguagem comum. Na verdade, as expressões “linguagem jurídica” e “português jurídico” nem deveriam existir, pois a Justiça não deveria ter um “dialeto” próprio.

É inegável que seja necessária a utilização de termos técnicos, como ocorre na maioria das áreas do conhecimento. No entanto, isso não significa que seja coerente alterar o próprio formato da língua, empregando-se, por exemplo, uma ordem sintática invertida, totalmente antinatural, ou um vocabulário quase predominantemente desconhecido pela sociedade contemporânea. Dessa forma, a confusão entre linguagem técnica e linguagem rebuscada é algo que deve ficar definitivamente no passado para que o Judiciário alcance a excelência também na comunicação com o público externo.

De forma semelhante, há um equívoco quando mencionamos a necessidade de adoção da norma culta na redação de textos oficiais. A expressão norma culta é erroneamente associada a uma linguagem pomposa, academicista, de difícil compreensão para o cidadão comum. É preciso superar essa ideia equivocada.

A norma culta, variação linguística encontrada com mais frequência nos grandes centros urbanos do país, apresenta duas características principais: a observância das regras gramaticais e o emprego de um vocabulário que seja compartilhado pela maior parte dos falantes da língua. É interessante observar que não há referência a um vocabulário rebuscado ou sofisticado, mas a um vocabulário “comum” à comunidade linguística brasileira como um todo. Mesmo que uma pessoa não seja capaz de explicar uma determinada regra gramatical ou classificar os termos de uma oração, essa pessoa será capaz de compreender uma oração corretamente construída do ponto de vista gramatical se o vocabulário utilizado for do seu conhecimento.

Na verdade, desvios gramaticais podem gerar problemas de interpretação, prejudicando a comunicação. A correta transmissão de uma mensagem pode ser irremediavelmente prejudicada por solecismos[1] (erros de sintaxe), arcaísmos (uso de termos obsoletos, praticamente fora de uso), problemas ortográficos, ausência de paralelismo sintático e semântico, cruzamentos (presença de contaminação entre duas estruturas semelhantes gerando problemas sintáticos) entre outros desvios da norma culta.

O rebuscamento, quando levado ao extremo, pode soar ridículo e até mesmo levar o escritor a cometer erros gramaticais. Ao tentar impor ao texto sua “marca pessoal”, o escritor pode acabar se perdendo em meio às inversões sintáticas ou cometer um erro de regência verbal, por não ter conhecimento suficiente a respeito de um verbo obsoleto. Veja o exemplo de cruzamento sintático a seguir:

“A manifestação do parquet corrobora com a escorreita aplicação da lei determinada pelo excelso Tribunal em seu decisorium litis.”

Talvez por estar profundamente concentrado em adotar um vocabulário complexo e rebuscado, o escritor tenha se esquecido da regência correta do verbo corroborar, um verbo transitivo direto. Teria sido muito mais simples (e eficientes) escrever “a manifestação do Ministério Público corrobora a correta aplicação da lei determinada pelo Tribunal no acórdão”. Ainda há a opção de substituir o verbo “corroborar” por “confirmar” ou “comprovar”, a depender da intenção que o autor quer passar com o seu texto.

Como ensina Antonio Gidi, esse esforço por se fazer “presente” em um texto oficial é totalmente inadequado:

“A invisibilidade do estilo é particularmente importante na linguagem científica, técnica e profissional, que deve ser simples, direta, concisa, eficiente e convincente. O objetivo é que o estilo seja imperceptível, focando a atenção do leitor apenas no conteúdo. Quando o estilo desaparece, ressalta-se a mensagem”. (GIDI, 2022, p. 47)

Essa invisibilidade é ainda mais desejável quando levamos em consideração dois dos princípios orientadores da administração pública: a impessoalidade e a formalidade.

Além da necessidade interna de imprimir um estilo pessoal ao texto, outra justificativa muitas vezes usada para o rebuscamento é a reserva de mercado: alguns profissionais acreditam que precisam escrever daquela forma para parecerem competentes, inteligentes ou bem-sucedidos. Esse é um grande equívoco e precisa ser superado o quanto antes.

Escrever mal, com rebuscamento artificial e com expressões antiquadas e desconhecidas, pode prejudicar a transmissão da mensagem. O conteúdo e a habilidade de argumentação do escritor podem ser completamente ofuscados por esses vícios. Vejam que tragédia: o profissional tem o conhecimento necessário, mas, ao tentar escrever de forma pomposa, passa justamente a impressão de não possuir conhecimento algum.

                Quanto à justificativa relacionada à necessidade de uma “linguagem técnica”, como explicado anteriormente, o campo profissional em que o Judiciário se insere exige o uso de alguns termos específicos e, em alguns casos, a adoção de estruturas textuais próprias. Há uma série de termos e expressões característicos da linguagem jurídica cujo uso se faz necessário para a correta delimitação de conceitos específicos dessa área. Esse vocabulário técnico desempenha uma função importante para a própria clareza do texto. Vejamos o exemplo de um acórdão da Terceira Turma Cível do TJDFT:

"1. Os créditos tributários relativos a impostos, cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis, têm natureza jurídica propter rem e, por isso, sub-rogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes, nos termos do art. 130 do Código Tributário Nacional. 2. A sub-rogação verificada na aquisição de bens é pessoal, há mudança do sujeito passivo da obrigação, porquanto o adquirente passa a ser o responsável por todo o crédito tributário do imóvel. 3. Em que pese a possibilidade de a vendedora diligenciar junto à Secretaria de Fazenda do Distrito Federal para transferência da responsabilidade pelo pagamento de tributos lançados sobre imóvel cuja propriedade cartorária já foi transferida ao comprador, tal situação não cria responsabilidade concorrente para tanto, em especial diante da previsão do artigo 130 do Código Tributário Nacional. 4. O excesso de tempo em que o nome permanece inscrito na dívida ativa do Distrito Federal causa considerável sofrimento, que ultrapassa o mero dissabor e abalos à imagem e à credibilidade, os quais devem ser indenizáveis."[2]

Acórdão 1274329, 07301828920198070001, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 12/8/2020, publicado no DJE: 26/8/202.

 

                As expressões “fato gerador”, “domínio útil”, “natureza jurídica propter rem” e “sub-rogar” são necessárias para a correta comunicação da decisão. O leitor comum pode ter dificuldade para compreender esses termos, mas o seu uso não pode ser afastado sem certo risco para a segurança jurídica. No entanto, podemos observar que, no ponto dois, a Relatora do Acórdão explica o significado da expressão sub-rogação.  Essa explicação, mesmo que não tenha sido explícita, esclarece um pouco o conceito de obrigação propter rem, citado anteriormente.

Percebemos assim, que termos técnicos, quando adequadamente utilizados, impedem falhas na comunicação que podem gerar problemas graves no mundo jurídico. Há, no entanto, um limite para a tecnicidade do vocabulário jurídico. Se há opções mais simples e conhecidas que não comprometem a clareza do texto, do ponto de vista jurídico, nada justifica o uso de termos obscuros, antiquados e enigmáticos que, em lugar de explicar, acabam por complicar.

A utilização da norma culta da língua portuguesa não é uma determinação isolada: ela se insere dentro da busca por uma comunicação mais clara e mais transparente, que contribua para a aproximação entre a Justiça e a sociedade. Esse é um dos desafios delineados pelo Conselho Nacional de Justiça na Resolução 325, de 29 de junho de 2020. A Resolução dispõe sobre a Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026 e propõe como um dos macrodesafios do Poder Judiciário a adoção de uma linguagem mais simples pelos órgãos da Justiça:

FORTALECIMENTO DA RELAÇÃO INSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO COM A SOCIEDADE Descrição: Refere-se à adoção de estratégias de comunicação e de procedimentos objetivos, ágeis e em linguagem de fácil compreensão, visando à transparência e ao fortalecimento do Poder Judiciário como instituição garantidora dos direitos. Abrange a atuação interinstitucional integrada e sistêmica, com iniciativas pela solução de problemas públicos que envolvam instituições do Estado e da sociedade civil. (Resolução 325, de 29 de junho de 2020, p. 11). (grifo nosso)

Conclui-se, assim, que a Portaria Conjunta 91 do TJDFT, ao determinar a obediência às regras gramaticais da língua portuguesa na criação e revisão de documentos e materiais informativos (art. 5º, V), visa à adoção de uma linguagem simples, que possa ser compreendida pela sociedade como um todo, de forma que o jurisdicionado possa ter acesso pleno à Justiça. Não é mais aceitável que a linguagem jurídica se mostre inacessível ao seu principal destinatário. Por essa razão, os agentes públicos devem buscar aprimorar a sua redação de forma que reflita um uso correto (do ponto de vista da norma culta), claro e eficiente da língua portuguesa, de acordo com o padrão técnico-jurídico, mas apto a tornar mais próxima a relação entre a sociedade e o Judiciário.

 

Referências:

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 325, de 29 de junho de 2020. Dispõe sobre a Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026 e dá outras providências. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3365. DJe/CNJ nº 201, de 30/06/2020, p. 2-10. Acesso em: 24 out. 2022.

BRASIL.Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Portaria conjunta 91 de 1º de setembro de 2021. Regulamenta o uso de linguagem simples e de direito visual no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT. DJe nº 168, de 3/09/2021, fls. 25-27. Acesso em: 24 out 2022.

GIDI, Antônio. Redação jurídica: Estilo profissional. Forma, estrutura, coesão e voz. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022.

PAIVA, Marcelo. Português jurídico. 10. ed. Brasília: Educere, 2015.



[1] “É o erro de sintaxe (que abrange a concordância, a regência, a colocação e a má estruturação dos termos da oração) que a torna incompreensível ou imprecisa, ou a inadequação de se levar para uma variedade da língua a norma de outra variedade; em geral, da norma coloquial ou popular para a norma exemplar: Eu lhe abracei (por o).” (BECHARA, 2019, p. 632).

sábado, 19 de fevereiro de 2022

O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E A PARTICIPAÇÃO POPULAR: UMA RELEITURA SEGUNDO O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 


 

 

 

O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA E A PARTICIPAÇÃO POPULAR: UMA RELEITURA SEGUNDO O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 

 

 

Lorena Brandizz

 

 

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar uma análise do princípio da eficiência da Administração Pública sob a ótica do Estado Democrático de Direito. A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o objetivo da atividade administrativa passou a ser a satisfação dos direitos fundamentais. Dessa forma, a hipótese a ser defendida é que, dentro do Estado Democrático de Direito, a eficiência da Administração Pública tem seu significado ampliado para incluir, além da noção original de produtividade e celeridade, a ideia de participação popular. Assim, serão apresentados alguns exemplos de medidas adotadas por órgãos da Administração Pública que buscam a efetivação de uma democracia participativa ao permitir a participação popular em seus processos de tomada de decisão. O objetivo final é demonstrar que a atividade administrativa só é eficiente quando é capaz de responder aos anseios da sociedade, garantindo-lhe o exercício dos direitos fundamentais assegurados no texto constitucional, o que só é possível por meio de uma participação popular efetiva.

 

PALAVRAS-CHAVE: Direito Administrativo. Princípio da Eficiência. Participação popular. Democracia participativa.


 

INTRODUÇÃO

 

            O Direito Administrativo evoluiu juntamente com o Estado e a sociedade. Estudar a evolução do Direito Administrativo é estudar as diversas mudanças que transformaram a própria estrutura do Estado. Sendo assim, o presente artigo tem por objetivo analisar a ressignificação operada recentemente sobre o princípio da eficiência da Administração Pública. Para tanto, em um primeiro momento, será apresentada uma breve retrospectiva a respeito das transformações pelas quais o Estado passou até assumir a forma de Estado Democrático de Direito. Será possível perceber que o Direito Administrativo acompanhou toda essa evolução para que suas regras e princípios pudessem refletir os novos objetivos perseguidos pela atividade administrativa.

            Em um segundo momento, será demonstrado que o princípio da eficiência no Estado Democrático de Direito está profundamente associado ao novo objetivo da atividade administrativa, a saber, a satisfação dos direitos fundamentais. Será constatado que o referido princípio não pode mais significar tão somente a busca pela produtividade e pela celeridade como um fim em si mesmo. A eficiência do Estado se revelará na realização da sua finalidade precípua que, a partir da constitucionalização do Direito Administrativo, passou a ser, conforme defenderemos ao longo de todo o presente trabalho, a satisfação de todo o sistema de direitos e garantias fundamentais. O papel do princípio da eficiência nesse novo cenário está justamente na busca de processos e mecanismos que garantam que a Administração Pública satisfaça esses direitos de forma econômica, célere e legítima, sem deixar de observar os demais princípios que orientam a atividade administrativa.

            Por fim, dada a estreita relação entre o princípio da eficiência e a própria noção de Estado Democrático de Direito será defendida a hipótese de que a observação plena do referido princípio só é possível no contexto de uma Administração Pública participativa. Buscar-se-á demonstrar que, para que o Estado possa satisfazer os direitos fundamentais da sociedade, faz-se necessário que essa sociedade tenha voz e a use de forma direta. A Administração Pública tem o dever de fomentar a cidadania o que deve ser feito não somente pela democracia representativa, mas também por meio da democracia participativa.

 

 

1.      A EVOLUÇÃO DO ESTADO E DO DIREITO ADMINISTRATIVO

 

O nascimento do Direito Administrativo ocorre juntamente com a concepção do Estado Liberal de Direito. Inicialmente considerado inimigo do povo, pois exercia a função de guarda noturno, esse Estado evitava intervir na ordem social e econômica, pois o objetivo era preservar, assegurar e fomentar a liberdade privada. No entanto, o tempo revelou que essa abstenção absoluta do Estado se tornaria nociva no longo prazo. O que se observou foi o aumento progressivo e descontrolado da desigualdade social, fazendo surgir a necessidade de normas de ordem pública que pudessem proporcionar uma situação mais equilibrada.

            Em virtude do crescimento desenfreado da desigualdade social, começou a tomar forma o Estado Social de Direito. O Estado passou a intervir de forma direta nas relações sociais e na própria economia. Tratava-se de uma necessidade premente, pois as camadas menos favorecidas da sociedade estavam à deriva, sem qualquer proteção e assistência. Esse Welfare State, dada a necessidade de participar de diversas áreas da sociedade, acabou passando por um processo de hipertrofia. O aparato estatal se tornou gigantesco e, por isso, lento e burocrático. O que se observou é que o gigantismo estatal acabava por impossibilitar a consecução dos próprios objetivos que levaram à sua transformação.

            Após a constatação de que um Estado hipertrofiado seria incapaz de garantir os direitos sociais de forma efetiva, passou-se a buscar a desburocratização e a redução do aparelho estatal. Esse novo formato de Estado que começou a surgir, o Estado Democrático de Direito, deveria favorecer a descentralização da atividade administrativa, uma atividade que agora estaria centrada em resultados e não em processos, como era o caso da administração burocrática. Passava-se a adotar um modelo gerencial de administração pública.

            Rafael Carvalho Rezende Oliveira resume bem todo esse processo de transformação do Estado ao tratar do fundamento do Direito Administrativo. O autor afirma que 

 

Quanto ao fundamento do Direito Administrativo, o tema sofreu mutações ao longo do tempo, especialmente pelas mudanças no perfil do Estado e da sociedade. Inicialmente concebido a partir da noção de serviço público, o Direito Administrativo foi alargado e encontrou fundamento na concepção tradicional do interesse público. Atualmente, influenciado pelo fenômeno da constitucionalização do ordenamento jurídico, parece adequado sustentar que o seu principal objetivo é a satisfação dos direitos fundamentais. (OLIVEIRA, 2019, p. 4).

 

 A análise da Constituição Federal de 1988 é extremamente importante para a compreensão de como essa transformação se operou na Administração Pública brasileira, pois ela trouxe para o Direito Administrativo a centralidade dos direitos fundamentais e concedeu força normativa a princípios que antes eram apenas “orientadores” da atividade administrativa.

Uma das mudanças mais significativas trazidas pela constitucionalização do Direito Administrativo foi a redefinição da noção de supremacia do interesse público sobre o privado. Atualmente, não se acredita mais na plenitude do referido princípio. Há vários doutrinadores que buscam defender ou evidenciar a sua mitigação.

Couto, ao ser referir ao princípio da supremacia do interesse público, o conceitua como “o anseio de satisfação de uma necessidade social ou estatal considerada relevante à sua época, podendo ser encontrado nos fragmentos comuns extraídos de alguns interesses privados juridicamente protegidos (COUTO, 2019 p. 101).

Segundo Couto, a satisfação dos direitos fundamentais está intimamente ligada à noção de interesse público primário, pois o povo, ao eleger os seus representantes por meio da democracia representativa, espera que o Estado, como um tudo, garanta o exercício dos direitos que a própria Carta Constitucional lhes assegura. O autor assinala, inclusive, que o próprio Ministério Público tem legitimidade para exigir em juízo a satisfação de tais direitos. Nas palavras do autor:

Em primeira análise, quase todos os direitos fundamentais são exigíveis pelo Parquet, logo, mesmo havendo colisão entre o direito fundamental vazado pelo interesse público primário e qualquer outro interesse público primário, a natureza daquele resta intacta pela utilização da ponderação de valores para o caso concreto. (COUTO, 2019, p. 107)

 

Percebemos que Couto faz referência à ponderação como instrumento interpretativo a ser usado pelo julgador. A ponderação está presente na doutrina constitucional moderna de forma definitiva. Segundo Gilmar Mendes, em seu Curso de Direito Constitucional, o princípio da reserva legal, a partir da aplicação da ponderação, se converteu em princípio da reserva legal proporcional. Trata-se da aplicação do princípio da proporcionalidade, que abrange três subprincípios: da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. A respeito desse último, o referido autor afirma que

(...) um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção par ao atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (propocionalidade em sentido estrito) (MENDES, 2017, p. 225) (grifo no original).

 

Percebe-se assim, que não há mais a concepção de uma Administração Pública soberana e totalitária, que imponha de forma unilateral um “abstrato interesse público”. Na verdade, o problema está justamente aí: o conceito de interesse público é extremamente abstrato, proporcionando espaço para arbitrariedades. Por essa razão, muitos doutrinadores defendem a sua mitigação ou ponderação quando entra em conflito com direitos fundamentais. Oliveira afirma que não se pode admitir que a atuação estatal seja fundada sob um conceito tão “abstrato e indecifrável” com este. Por isso, ele defende que seria mais interessante que se falasse em princípio da finalidade pública reforçando-se a ideia de que o Estado não busca um “interesse público” abstrato e obscuro, mas, por meio da ponderação, busca a realização de “todos os interesses envolvidos” (OLIVEIRA, 2019, p. 50).

No entanto, ainda há alguns autores que se posicionam de forma diversa, defendendo a manutenção da supremacia quase absoluta do interesse público sobre o privado, como é o caso de Carvalho Filho, como vemos no excerto a seguir.  

 

Algumas vozes se têm levantado atualmente contra a existência do princípio em foco, argumentando-se no sentido da primazia de interesses privados com suporte em direitos fundamentais quando ocorrem determinadas situações específicas. Não lhes assiste razão, no entanto, nessa visão pretensamente modernista. Se é evidente que o sistema jurídico assegura aos particulares garantias contra o Estado em certos tipos de relação jurídica, é mais evidente ainda que, como regra, deva respeitar-se o interesse coletivo quando em confronto com o interesse particular. A existência de direitos fundamentais não exclui a densidade do princípio. Este é, na verdade, o corolário natural do regime democrático, calcado, como por todos sabido, na preponderância das maiorias. A “desconstrução” do princípio espelha uma visão distorcida e coloca em risco a própria democracia; o princípio, isto sim, suscita “reconstrução”, vale dizer, adaptação à dinâmica social, como já se afirmou com absoluto acerto. (CARVALHO FILHO, 2020, p. 35)

 

            Apesar disso, o que resta inquestionável é que o Direito Administrativo passou por um processo de constitucionalização irreversível, coerente com a própria transformação do Estado. Um outro efeito desse processo é a superação de uma concepção pura e absoluta do princípio da legalidade, que mantinha a Administração Pública engessada em uma visão positivista do ordenamento jurídico. Com o desenvolvimento do Pós-positivismo, a Administração Pública passou a pautar a sua atuação não somente pelo cumprimento da lei, mas também pela fiel observância dos princípios constitucionais, pois, como vimos anteriormente, o seu objetivo final é a satisfação dos direitos fundamentais. Segundo Oliveira, “a legalidade encontra-se inserida no denominado princípio da juridicidade que exige a submissão da atuação administrativa à lei e ao Direito” (2019, p. 39-40). O autor explica que mais do que o respeito a leis esparsas, a Administração Pública deve observância a um verdadeiro “bloco de legalidade” (p. 40).

            Percebemos, assim, que o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito trouxe para o Direito Administrativo uma completa releitura dos seus objetivos e mecanismos de atuação. Conforme apontamos anteriormente, o Estado deve atuar com vistas a efetivar os direitos fundamentais elencados na Constituição Federal. Há o entendimento de que esse Estado estaria “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade e a segurança” (MENDES, 2017, p. 133). Dessa forma, todos os princípios que informam o Direito Administrativo devem ser observados dentro dessa nova ótica, inclusivo o princípio da eficiência, conforme veremos a seguir.

 

2.      UMA NOVA CONCEPÇÃO DO PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA

 

O princípio da eficiência tem suas raízes na visão de um Estado mínimo. Inicialmente, ele surge como uma tentativa de harmonizar a atuação administrativa com princípios de outras áreas do conhecimento como a economia, a administração e a contabilidade. Vejamos o conceito de Nohara:

O princípio da eficiência foi positivado no caput do art. 37 da Constituição Federal por meio da Emenda Constitucional nº 19, de 1998, que seguiu o passo das legislações estrangeiras. A menção à eficiência no Direito Administrativo não representou uma grande novidade na medida em que ela era estudada como dever específico nas atribuições do administrador. A eficiência impõe ao agente público um modo de atuar que produza resultados favoráveis à consecução dos fins que cabe ao Estado alcançar. Assim, antes de sua positivação como princípio, os manuais a mencionavam como faceta exigida no âmbito do dever funcional (2020, p. 93).

 

Conforme apontado pela autora, a positivação do referido princípio apenas consolidou (e normatizou) o entendimento de que o administrador deve buscar a realização eficiente dos fins a serem alcançados pelo Estado. Ou seja, essa ideia já estava sendo abordada pela doutrina, pois havia uma tendência geral à busca pela produtividade na Administração Pública, como resposta àquela hipertrofia a que nos referimos anteriormente: o Estado havia se transformado em uma máquina ineficiente, lenta e improdutiva, mais focada nos processos do que nos resultados.

No entanto, o que se observou é que seria impossível aplicar de forma direta o princípio da eficiência em sua abordagem neoliberal no contexto da Administração Pública. Ora, os modelos e mecanismos que caracterizavam a atividade privada não poderiam ser transpostos de forma direta para a atividade administrativa do Estado. O Estado, principalmente em sua concepção democrática, não tem como objetivo final a produtividade ou o lucro, mas o bem comum e o desenvolvimento da sociedade.

Dessa forma, o princípio da eficiência deve ser analisado a partir de uma nova perspectiva, dentro de uma abordagem ampla e voltada para a defesa dos direitos fundamentais. Bolzan de Almeida fala de “presteza, perfeição e rendimento funcional” quando aborda o princípio sob análise, conforme vemos no trecho abaixo:

Segundo os ensinamentos da doutrina, “a eficiência exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional”. Essa eficiência deverá atingir não só os agentes públicos como também a própria Administração. Os agentes públicos deverão atuar, da melhor forma pos­sível, na busca dos melhores resultados. Já a Administração deverá estruturar de forma racional sua organização, de modo a atingir os melhores resultados a um menor custo possível. (BOLZAN DE ALMEIDA, p. 50).

 

O referido autor aponta para uma dupla observância do princípio da eficiência. É necessário observar o segundo ponto de vista apontado pelo autor: ele salienta que a Administração Pública deve buscar organizar-se de forma racional para que o bem comum seja alcançado da melhor forma possível, mas ao menor custo possível. O que se percebe nas ideias do autor é a própria necessidade de ponderação. Não se busca uma economia cega, sem observância da qualidade dos processos e serviços a serem oferecidos à população, mas uma atividade administrativa “racional”.

É interessante observar com atenção a ideia de racionalidade. Racional é o processo que se organiza de forma coerente, com princípio, meio e fim. Há uma ordem lógica, assim como há um esforço pela busca das melhores alternativas para se alcançar um fim desejado. Conforme afirmamos reiteradas vezes, o fim almejado pelo Estado, dentro de uma nova ordem constitucional, é a persecução dos direitos fundamentais. Dessa forma, uma atividade administrativa “racional” é aquela que buscar a melhor alternativa para a satisfação dos referidos direitos.

Esse entendimento é de fundamental importância para compreendermos a necessidade premente de a Administração Pública adotar medidas que possibilitem a participação popular nos seus processos decisórios, assim como na execução das políticas públicas. A participação popular direta é indispensável para que o Estado possa satisfazer as necessidades da população.

É evidente que a democracia tem sido exercida por meio da representação popular: o povo elege representantes que produzem leis que (presumidamente) irão garantir a realização do bem comum. No entanto, já restou comprovado que a democracia representativa não é suficiente para a satisfação plena dos direitos fundamentais. A própria Constituição Federal positivou a necessidade de participação popular.

Mazza (2020) relembra que a Constituição Federal, em seu art. 37, §3º, determina que a lei deverá estimular a participação do cidadão de forma direta e indireta na administração. O autor lista algumas formas de participação:

a) reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral; b) o acesso dos usuários a registros administrativos e informações sobre atos de governo; c) a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo do cargo, emprego ou função na Administração Pública (MAZZA, 2020, P. 117).

 

Dessa forma, a participação acabou se tornando um princípio da administração pública, cuja observância se faz necessária para a própria consecução dos seus objetivos. O princípio da eficiência, associado à ideia de participação popular, não pode mais significar tão somente a busca pela produtividade e pela celeridade como um fim em si mesmo. Seu papel, nesse novo cenário, está justamente na busca de processos e mecanismos que garantam que a Administração Pública satisfaça os direitos fundamentais de forma econômica, célere e legítima, sem deixar de observar os demais princípios que orientam a atividade administrativa.

É importante relembrar que princípios são regras de otimização. Conforme ensina Robert Alexy (apud MAZZA, 2020), eles são “regras que exigem que algo seja realizado “na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes” (MAZZA, 2020, p. 110). Mazza, citando o conceito apresentado por Alexy, explica que os princípios “caracterizam-se por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas” (2020, p. 110).

Percebemos assim, que os princípios administrativos têm como objetivo a otimização da prestação da atividade administrativa. Sua natureza de regra de otimização lhes permite a ponderação no caso concreto, ou seja, diante de um conflito entre um princípio e uma norma, ou entre vários princípios, será possível a aplicação parcial de um e outro princípio, o afastamento de uma norma ou mesmo a sua interpretação segundo a Constituição.

Dentro dessa perspectiva é que Oliveira afirma que a atividade do Estado Democrático de Direito deve, além do respeito à lei e à Constituição, “pautar-se por uma legitimidade reforçada” (OLIVEIRA, 2019, p. 53). Ora, a legitimidade está vinculada a uma adesão da sociedade às políticas públicas e às medidas adotadas pelo Estado para o alcança do interesse público. A sociedade não pode mais ver a prestação estatal como um favor ou como uma atividade filantrópica. Ao participar dos processos decisórios e executórios, a sociedade se reconhece como destinatária da atividade estatal, mas, ao mesmo tempo percebe que o que legitima a atuação do Estado é a consensualidade. Nas palavras de Oliveira:

A participação popular no procedimento administrativo, nessa perspectiva do consensualismo, revela-se um importante instrumento de democratização da Administração Pública, pois permite uma melhor ponderação pelas autoridades administrativas dos interesses particulares, identificando, com maior precisão, os problemas e as diferentes conseqüências possíveis da futura decisão. Ademais, a participação aumenta a probabilidade de aceitação dos destinatários das decisões administrativas, constituindo, por isso, importante fator de legitimidade democrática da atuação da Administração Pública. (OLIVEIRA, 2019, p. 53).

 

            Percebemos assim, a importância de uma releitura do princípio da eficiência segundo a ótica da participação popular direta e do consensualismo. A discussão de políticas públicas, as deliberações a respeito das medidas de satisfação das necessidades de uma comunidade, a formação e a execução de tais medidas devem, necessariamente e na medida do possível, ser abertas à deliberação popular, por meio de plebiscitos, referendos, audiências públicas etc. Dessa forma, será possível que a Administração Pública atue de forma racional, alcançando de maneira eficiente o objetivo que orienta a sua própria existência: a satisfação dos direitos fundamentais.

 

3.      PREVISÕES LEGAIS DE MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR

 

Oliveira (2019, p. 54 e 55), apresenta alguns exemplos previstos na legislação infraconstitucional, em que é possível observação a criação de medidas efetivas de participação popular nos processos decisórios da Administração Pública. Um desses exemplos é a exigência de que seja realizada uma audiência pública quando a licitação alcançar um grande vulto econômico (Lei 8.666/1999, art. 312-34). Ora, os recursos que serão usados para custear o objeto dessa licitação são recursos públicos, dessa forma, nada mais lógico (e racional) do que permitir que a população participe dessa tomada de decisão.

            Além dessa hipótese, a Lei 9.784/1999, prevê a possibilidade de que audiências e consultas públicas sejam realizadas durante os processos administrativos em geral, influenciando nas tomadas de decisões. O processo administrativo, de forma geral, é um mecanismo de controle da atividade pública. Sendo assim, a participação popular na sua realização é uma forma de potencializar o seu aspecto democrático.

            Por fim, dentre os diversos exemplos apresentados por Oliveira, é importante citar a consulta pública prevista pela Lei de Parcerias Público-Privadas (Lei 11.079/2004), conforme lemos em seu art. 10, inciso VI, a seguir transcrito:

VI – submissão da minuta de edital e de contrato à consulta pública, mediante publicação na imprensa oficial, em jornais de grande circulação e por meio eletrônico, que deverá informar a justificativa para a contratação, a identificação do objeto, o prazo de duração do contrato, seu valor estimado, fixando-se prazo mínimo de 30 (trinta) dias para recebimento de sugestões, cujo termo dar-se-á pelo menos 7 (sete) dias antes da data prevista para a publicação do edital;

 

            O interessante nesse dispositivo é que as parcerias público-privadas são um exemplo claro da aplicação do princípio da eficiência em sua acepção mais clássica. Ao incluir a possibilidade de audiências públicas na confecção dos editais e dos próprios contratos envolvidos em tais parcerias, podemos observar o legislador aplicando a abordagem moderna do princípio da eficiência, pois há o reconhecimento da importância da participação popular na atividade pública.

 

CONCLUSÃO

            O presente artigo buscou apresentar uma visão atualizada do princípio da eficiência. Por meio de uma abordagem retrospectiva, apresentamos a evolução do Estado, desde uma concepção liberal, passando pelo Estado Social de Direito e chegando, finalmente, ao Estado Democrático de Direito, no qual há ainda a ênfase na busca dos direitos sociais, mas sob uma perspectiva constitucional e adotando-se um modelo gerencial de administração pública.

            Apresentamos argumentos para sustentar a superação de uma visão neoliberal do princípio da eficiência e a adoção de uma abordagem harmonizada com a constitucionalização do Direito Administrativo. Dentro dessa nova abordagem, a prestação da atividade administrativa será eficiente quando satisfizer, de forma racional, plena, célere e econômica, os direitos fundamentais.

            Por fim, demonstramos que, para que o Estado possa satisfazer os direitos fundamentais da sociedade, faz-se necessário que essa sociedade tenha voz e participe de forma ativa dos processos decisórios e da execução das políticas e atividade públicas. Dessa forma, o que se constatou é que a Administração Pública tem o dever de fomentar a cidadania o que deve ser feito não somente pela democracia representativa, mas também por meio da democracia participativa.

 


 

FONTES BIBLIOGRÁFICAS

 

CARVALHO FILHO, José do Santos. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2020.

COUTO, Reinaldo. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. 

MAZZA, Alexandre. Manual de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017.

NOHARA, Irene. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2020.

OLIVERIA, Rafael Carvalho Rezende. Curso de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2019.

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