sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A Intervenção Mínima no Direito Penal e o desenvolvimento da Justiça Restaurativa




RESUMO

O presente artigo apresenta uma análise do conceito de intervenção mínima no Direito Penal, em sua relação com o desenvolvimento da Justiça Restaurativa. Apresentar-se-ão os conceitos de ambas, quando e como surgiram. Além disso, será investigada a forma como a aplicação do princípio da intervenção mínima influenciou no surgimento da Justiça Restaurativa e como o desenvolvimento dessa tem possibilitado a aplicação cada vez mais efetiva daquele princípio. Na conclusão será apresentada uma breve análise crítica da relação entre intervenção mínima e Justiça Restaurativa, em que será defendida a hipótese de que tal relação está na base na realização efetiva dos direitos fundamentais que caracterizam o Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: intervenção mínima, Direito Penal, Justiça Restaurativa, Estado Democrático de Direito.

ABSTRACT

This article presents an analysis of the concept of minimum intervention in Criminal Law, in its relation with the development of Restorative Justice. We will present both concepts and when and how they emerged. In addition, it will be investigated how the application of the principle of minimum intervention influenced the emergence of Restorative Justice and how its development has made possible the effective application of that principle. In conclusion, a brief critical analysis of the relationship between minimum intervention and Restorative Justice will be presented, in which we will defend the hypothesis that this relationship is in the basis of the effective realization of the fundamental rights that characterize the Democratic Rule of Law.

Key words: minimum intervention, Criminal Law, Restorative Justice, Democratic Rule of Law.


INTRODUÇÃO

            O presente artigo tem por objetivo analisar o surgimento do princípio da intervenção mínima e sua relação com o desenvolvimento da Justiça Restaurativa. Em um primeiro momento, será analisado o conceito de intervenção mínima, o contexto histórico em que tal princípio surgiu e como se deu o seu desenvolvimento ao longo do tempo.
            Posteriormente, abordaremos o conceito de Justiça Restaurativa, a conjuntura na qual ela surgiu, quais são suas peculiaridades quando comparada com a Justiça Penal comum e quais são as perspectivas que lhe são apresentadas na atualidade dentro do Sistema Penal brasileiro.
            No terceiro tópico, buscaremos demonstrar a influência recíproca que se dá entre os dois conceitos, analisando a forma como o princípio da intervenção mínima do Direito Penal influenciou no surgimento da Justiça Restaurativa e, por outro lado, como a efetivação e ampliação das técnicas e práticas da Justiça Restaurativa tem tornado cada vez mais eficaz a aplicação do princípio da intervenção mínima.
            Como conclusão, com base nos conceitos e nas relações apresentadas ao longo do texto, será feita uma exposição crítica a respeito do assunto, em que será defendida a hipótese de que aquela relação de interdependência recíproca entre a intervenção mínima do Direito Penal e a Justiça Restaurativa tem possibilitado a realização efetiva dos Direitos Fundamentais que dão forma e existência ao Estado Democrático de Direito. Por fim, serão brevemente analisados os desafios enfrentados pela Justiça Restaurativa, especialmente a resistência da sociedade em considerar outras formas de justiça além da justiça retributiva. Defenderemos a hipótese de que tal resistência tem origem na falta de reconhecimento, sendo esse conceito acessado dentro da Teoria do Reconhecimento de Axel Honneth (2003, apud SAAVEDRA, SOBOTTKA, 2008).


1 INTERVENÇÃO MÍNIMA

            Durante o Estado Absolutista, o Direito Penal caracterizou-se por uma intervenção estatal exacerbada na vida dos indivíduos, limitando sua liberdade de forma excessiva e aplicando penas de caráter cruel e desumano. O Direito Penal do Antigo Regime baseava-se em uma legislação arbitrária que privilegiava os castigos corporais, a pena de morte, a exposição pública e o suplício. A natureza degradante das penas aplicadas visava a “expiação” e os juízes possuíam uma liberdade ampla para julgar de forma arbitrária, o que na maioria das vezes resultava na aplicação de penas conforme a classe social dos condenados. 
            Assim, na segunda metade do século XVIII, inspirados pelos ideais iluministas, diversos pensadores começaram a defender uma reforma do Direito Penal, condenando abertamente as arbitrariedades que o caracterizavam e a crueldade e degradação com que as leis eram formuladas e aplicadas. Esses pensadores defendiam a racionalização do processo punitivo e a extinção daquelas penas que afetavam a dignidade humana dos indivíduos. Bitencourt (2014), em relação ao pensamento iluminista e humanitário que começava a dominar os círculos intelectuais, afirma que:

A pena deve ser proporcional ao crime, devendo-se levar em consideração, quando imposta, as circunstâncias pessoais do delinquente, seu grau de malícia e, sobretudo, produzir a impressão de ser eficaz sobre o espírito dos homens, sendo, ao mesmo tempo, a menos cruel para o corpo do delinquente. (BITENCOURT, 2014, p. 82)

            Ao lado de filósofos de grande renome, como Rousseau e Montesquieu, levantaram-se pensadores do campo do Direito Penal, como Beccaria, Bentham e Howard, para citar alguns, que inauguraram o Direito Penal Moderno. A obra de Beccaria, “Dos delitos e das penas”, é representativa desse período, por apresentar os pressupostos do Direito Penal segundo uma concepção liberal do Estado e do Direito. Beccaria formula um conjunto de princípios que se opõem à arbitrariedade da Justiça Penal do Antigo Regime: os princípios da legalidade (que geraria certeza e igualdade jurídica), da humanidade, da proporcionalidade e da utilidade da pena, cuja finalidade não é mais a tortura ou o suplício, mas a prevenção de novos delitos (BITENCOURT, 2014, p. 49).
            A Escola Clássica, como ficou conhecida essa linha de pensamento que buscava a humanização do Direito Penal, costuma ser dividida pelos doutrinadores, em dois períodos: um combativo e um construtivo. No primeiro período é possível distinguir uma atitude crítica por parte dos teóricos que buscam desconstruir aquele sistema penal arbitrário, negando e combatendo as suas ideias basilares. No segundo período, por sua vez, identifica-se uma postura positiva, criadora, por meio da qual os pensadores objetivam reformular o Direito Penal com base nos princípios, valores e ideias iluministas e humanitários (ANDRADE, 2015, p. 54, 55).
            A partir da codificação, a Escola Clássica passa de uma atitude combativa, para uma atitude construtiva que terá como fruto o moderno Direito Penal liberal. A partir desse ímpeto construtivo, os autores clássicos procuraram elaborar sistematicamente os conceitos de crime, responsabilidade penal e pena, assim como a própria conceituação positiva do Direito Penal em si, considerado de forma sistemática.
Dessa forma, Andrade, ao tratar da consolidação da dogmática penal-jurídica em seu livro “A Ilusão da Segurança Jurídica” afirma que a Escola Clássica “empreenderá uma vigorosa racionalização do poder punitivo em nome, precisamente, da necessidade de garantir o indivíduo contra toda intervenção estatal arbitrária” (2015, p. 55).
É dentro desse contexto de reforma iluminista do controle penal que surgem os princípios limitadores do Direito Penal, com o objetivo claro de conter o impulso punitivo do Estado e garantir o respeito à liberdade e à dignidade dos cidadãos. Bitencourt afirma que esses princípios podem ser atualmente chamados de “Princípios Fundamentais de Direito Penal de um Estado Social e Democrático de Direito” (2014, p. 49, grifo no original).
Entre os princípios reguladores que informam o Direito Penal atualmente, podemos citar os princípios da legalidade e da reserva legal, o princípio da intervenção mínima (sobre o qual manteremos o foco a seguir), o princípio da fragmentariedade (que está estritamente relacionado com o anterior), o princípio da irretroatividade da lei penal, o princípio da insignificância, o princípio da proporcionalidade, o princípio da humanidade e o princípio da ofensividade, para citar alguns.
            O princípio da intervenção mínima é conhecido também como ultima ratio, pois significa que o Direito Penal deve ser o “último recurso” a ser aplicado com vistas à manutenção da ordem pública. Os princípios da legalidade e da reserva legal são eficazes do ponto de vista formal, ao limitar o poder punitivo do Estado determinando que não há crime, nem pena, sem que haja uma lei anterior que os defina. No entanto, esses princípios, por si sós, não são suficientes para conter a vociferante vontade punitiva do Estado, pois bastaria que uma determinada pena cruel fosse prevista, ou que dada conduta, mesmo que inofensiva, fosse tipificada, para que o Estado se imiscuísse nas liberdades individuais, sempre que assim desejasse (BITENCOURT, 2014, p. 53).
            Por tais motivos é que o princípio da intervenção mínima se mostra tão importante. Segundo tal principio, uma conduta só pode ser criminalizada se representar uma ameaça ou ofensa a bens jurídicos relevantes. Não somente isso, mesmo que se identifique a lesividade de determinada conduta, faz-se necessário investigar se outras formas de controle social não seriam suficientes para a prevenção do dano ao bem jurídico sob ataque. Se há outras formas de sanções que podem aplicar-se com tal objetivo, a criminalização da conduta deve ser afastada.
            O Direito Penal, dessa forma, deve ser o último recurso de que se faz uso, entrando em ação somente quando todas as outras possibilidades falharem ou forem insuficientes. Por isso é que o princípio da intervenção mínima também é conhecido como princípio da subsidiariedade do Direito Penal. Claus Roxin (apud BITENCOURT, 2014, p. 54), explica a importância desse princípio ao afirmar que “o castigo penal coloca em perigo a existência social do afetado, se o situa à margem da sociedade e, com isso, produz também um dano social”.
Andrade partilha desse ponto de vista, ao expor o poder devastador que o Direito Penal tem sobre a vida do indivíduo que passa pela condenação. A autora explica como a condenação opera como uma marca indelével sobre a vida do condenado. Segundo a labelling approach (como veio a ser conhecida essa teoria), a criminalidade não existe enquanto realidade ontológico, ela passa a existir quando a etiqueta de delinquente é posicionada sobre o criminoso, por meio daqueles que detêm o poder de punir. Aí estariam presentes os fenômenos da criminalização primária (que ocorre no nascimento da lei penal) e da criminalização secundária (que tem lugar durante a aplicação da lei penal) (ANDRADE, 2015, p. 208). Dadas as graves consequências sociais que se originam da aplicação da lei penal, compreende-se a razão pela qual ela deve ser a ultima ratio.
            No entanto, Bitencourt constata que o princípio da intervenção mínima tem sido relativamente ignorado a partir do início do século XIX. Segundo o autor

Os legisladores contemporâneos, nas mais diversas partes do mundo, têm abusado da criminalização e da penalização, em franca contradição com o princípio em exame, levando ao descrédito não apenas o Direito Penal, mas a sanção criminal, que acaba perdendo sua força intimidativa diante da ‘inflação legislativa’ reinante nos ordenamentos positivos. (BITENCOURT, 2014, p. 55).

            É nesse contexto que iniciativas como a da Justiça Restaurativa têm surgido, com a clara intenção de renovar aqueles princípios e valores humanitários. Como veremos a seguir, a Justiça Restaurativa possibilita a solução de conflitos sem a necessidade da aplicação de penas graves a situações que podem ser resolvidas por meios menos gravosos.

2 JUSTIÇA RESTAURATIVA

            Alguns autores atribuem a criação do termo Justiça Restaurativa a Alber Eglash, que, em seu artigo Beyond Restitution: Creative Restitution (1977), diferenciou três tipos de resposta ao crime: respostas fundamentadas na ideia de punição (retributivas), aquelas voltadas para a reeducação e recuperação (distributivas) e, por fim, aquelas respostas que buscam a reparação e reconstrução das pessoas e dos relacionamentos danificados pelo crime.
            A Justiça Restaurativa pode ser considerada, um movimento social relativamente recente. Os primeiros procedimentos com características restaurativas datam da década de 70. Segundo Daniel Silva Achutti (2016), o conjunto de práticas que podem ser agrupadas sob a classificação de Justiça Restaurativa é tão amplo que se torna muito difícil delinear-se uma definição clara de tal movimento.
            O que se percebe, no entanto, é que a Justiça Restaurativa nasceu de uma insatisfação com relação ao sistema de justiça tradicional. As estatísticas comprovavam, por um lado, a discriminação racial e social em todas as fases dos processos judiciais e, por outro, o fracasso total do sistema prisional, que se tornou incapaz tanto de coibir a criminalidade, como de recuperar os condenados.
Abordemos inicialmente, a questão da discriminação racial e social. Alguns autores, como Andrade (2015, p. 278), apontam para a seletividade, não somente na aplicação da lei, mas também no processo legislativo. Para essa autora, a discriminação tem início na tipificação de determinadas condutas que apontam para determinados grupos sociais. Andrade demonstra que esse fenômeno de seletividade criminal tem relação com um processo de desigualdade social mais amplo característico das sociedades capitalistas. A autora afirma que a criminalidade é uma realidade social criada por meio do processo de etiquetamento, como expusemos anteriormente, que ocorre, primeiramente na criação das leis penais, e posteriormente, por meio da atividade judicial.
            Sendo assim, o sistema penal se revela seletivo na distribuição da criminalidade, que se mostra condizente com a desigual distribuição de poder e propriedade na sociedade capitalista. Sua função latente se revela na “conservação e reprodução das relações de desigualdades” (ANDRADE, 2015, p. 282). Dentro desse raciocínio, o sistema penal estaria programado para violar a todos os princípios garantidores do Direito Penal, transformando a própria ideia original do Direito Penal em utopia.
Tal conjuntura criou um sentimento de frustração que levou ao surgimento de diversos estudos e iniciativas em busca de alternativas a esse modelo de justiça retributiva. A Justiça Restaurativa surgiu nesse contexto de insatisfação e inquietação, na busca da “construção de uma política criminal radicalmente diferente, voltada para uma drástica redução da violência na forma de administrar as situações problemáticas” (ACHUTTI, 2016, p. 54).
Uma das primeiras iniciativas identificadas como pertencentes à Justiça Restaurativa ocorreu na década de 70, no Canadá, no estado de Ontário. Conforme Howard Zehr (2008), dois jovens haviam sido condenados por atos de vandalismo contra 22 propriedades da cidade de Elmira. Um oficial de condicional, Mark Yantzi, solicitou ao juiz do caso que permitisse aos jovens se encontrarem com as vítimas de seus atos a fim de ressarci-las por seus danos. Surpreendentemente, quando o juiz proferiu a sentença, determinou que os encontros presenciais ocorressem e que, durante eles, fossem negociadas as indenizações. Em alguns meses, 20 vítimas foram indenizadas (as duas que faltaram haviam se mudado). 
Zehr explica que atualmente existem mais de 100 programas nos Estados Unidos que se utilizam desse tipo de mediação entre vítima e ofensor. Além dos Estados Unidos, outros países como Inglaterra, Canadá, Alemanha, França, Holanda e Finlândia possuem programas semelhantes. O autor afirma que

(...) considerados em seu conjunto todos esses programas oferecem uma base ampla de experiências úteis a uma abordagem que combina elementos de mediação e justiça reparadora dentro da estrutura da justiça criminal. Um grande leque de programas de resolução de conflitos apareceu nos últimos tempos, alguns dos quais tratam de casos com envolvimento atual ou potencial com a justiça criminal. Também estes oferecem ricas experiências com as quais podemos aprender” (ZEHR, 2008, p.150-151)

Percebe-se, dessa forma, que a Justiça Restaurativa forma um "grande leque" de programas e iniciativas que podem divergir significativamente em suas características. Em uma tentativa de construir uma ideia mais global dessa forma alternativa de justiça, Achutti apresenta uma coletânea de conceituações apresentadas por diversos autores. Entre esses autores, ele cita Johnstone e Van Ness, que afirmam que o que une as diversas iniciativas caracterizadas como pertencentes a esse “movimento social global” (JOHNSTONE, VAN NESS, 2007, apud ACHUTTI, 2016, p. 59) é o objetivo que está na base da Justiça Restaurativa: operar uma transformação na forma como a sociedade concebe e reage ao crime.
Dada a diversidade de programas e iniciativas que podem ser classificados dentro desse “leque” denominado Justiça Restaurativa, Johnstone e Van Ness (2007, p. 6-8, apud ACHUTTI, 2016, p. 63) elencaram três aspectos que, apesar de dificultarem a formulação de um conceito uno, contribuem para a compreensão da natureza dessa forma alternativa de justiça. Os autores afirmam que o conceito de Justiça Restaurativa está sujeito a avaliações científicas, é internamente complexo e encontra-se aberto a novos desenvolvimentos.
O segundo aspecto citado por Johnstone e Van Ness, a saber, a complexidade interna do conceito de Justiça Restaurativa é particularmente interessante, pois explora a diversidade de que se reveste esse fenômeno jurídico-social. Os autores explicam que, para que uma prática seja classificada como restaurativa, deverá apresentar uma ou mais das características a seguir:
 (i) o processo, de natureza informal, pelo qual o crime deverá ser abordado deve envolver vítimas, ofensores e demais personagens que tenham sido afetados por ele (a comunidade, por exemplo). Além disso, deve levar à compreensão dos danos causados e ao levantamento de hipóteses de reparação desses danos por parte do ofensor.
(ii) como deverá obrigatoriamente envolver todos as pessoas afetadas pelo delito, a ênfase deve recair no papel de cada uma delas dentro do contexto do delito;
(iii) “os mediadores ou facilitadores deverão se esforçar para que a resposta ao problema seja o menos estigmatizante e punitiva possível ao ofensor, de forma que este possa reconhecer o dano sem receios e se responsabilizar pela sua reparação” (ACHUTTI, 2016, p. 63-64);
(iv) o processo e os resultados que dele advierem, devem ser orientados por valores que garantam uma interação social pacífica e proveitosa, privilegiando-se valores como respeito e inclusão e evitando-se dar lugar à violência e à humilhação, por exemplo, cabendo aos mediadores a busca por tal cenário; 
v) a vítima deve receber uma atenção especial, sendo reconhecidos os danos que lhe foram causados e buscando-se atender às suas necessidades;
(vi) o processo como um todo deve enfatizar a reparação dos relacionamentos que foram abalados pela conduta delituosa.

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA E PRINCÍPIO DA INTERVENÇÃO MÍNIMA

            Como vimos anteriormente, o foco da Justiça Restaurativa é a reparação do dano causado pelo ofensor à vítima por meio do ato ilícito que cometeu. O delito, dessa forma, não é visto puramente como um fato jurídico (BRANDÃO, 2010), como uma violação à letra da lei. O crime é considerado como uma violação ao compromisso de cidadania que orienta as relações em sociedade. Às suas características de tipicidade e antijuridicidade, acrescenta-se (e salienta-se), dessa forma, um aspecto interpessoal, relativo à violação daqueles compromissos sociais. Por meio de suas práticas, a Justiça Restaurativa busca levar o ofensor a reconhecer os danos causados à vítima, suas necessidades e as possibilidades de reparação desses danos (materiais, morais e/ou emocionais).
            Dentro desse raciocínio, a aplicação do Direito Penal é inadequada para gerar os resultados esperados pela prática restaurativa. Como veremos a seguir, o encarceramento não leva, necessariamente, à responsabilização do ofensor e ao reconhecimento da necessidade de reparação. A aplicação ampla e irrestrita de penas restritivas de liberdade viola, dessa forma, o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, pois o que se tem comprovado por meio de diversas pesquisas mais recentes é que há alternativas ao encarceramento que podem apresentar resultados mais desejáveis.
O modelo tradicional de justiça desconsidera a figura da vítima. O foco da justiça criminal retributiva é o ofensor, é a aplicação de penalidades previstas legalmente. Zehr demonstra que a vítima é afetada profundamente pelo crime e a justiça, da forma como tem sido operada, não tem oferecido as condições necessárias para a recuperação, muito menos para a reparação do dano. A vítima assiste ao processo judicial como uma espectadora e não como uma participante. Ao fim, sua necessidade de vivenciar uma "experiência de justiça" (ZEHR, 2008, p. 27) é completamente ignorada. Nas palavras do autor

O crime é devastador porque perturba dois pressupostos fundamentais sobre os quais calcamos nossa vida: a crença de que o mundo é um lugar ordenado e dotado de significado, e a crença na autonomia pessoal. Esses dois pressupostos são essenciais para a inteireza do nosso ser. (ZEHR, 2008, p. 24).

Além disso, Zehr explica que o direito penal falha também na responsabilização do próprio ofensor. Ele não é levado a considerar os danos que causou a outro ser humano, muito menos a refletir sobre as possibilidades de reparar ou indenizar a vítima por tais danos. Como nos lembra Zehr, as sociedades ocidentais contemporâneas privilegiam a prisão como forma de punir o delinquente. O princípio da intervenção mínima é frequentemente esquecido e o encarceramento, que deveria ser o último recurso a ser cogitado (devendo sua aplicação, inclusive, ser justificada pelo juiz), é privilegiado. O que o juiz se sente obrigado a justificar é sua opção por formas alternativas de justiça, quando é o caso. Surpreendentemente, "a prisão é o primeiro em vez de ser o último recurso, e não apenas para crimes violentos" (ZEHR, 2008, p. 34).
Da mesma forma, Zehr demonstra que o encarceramento, como resposta ao dano causado pelo ofensor à vítima, é uma forma indireta (e ineficaz) de responsabilização, pois o ofensor não é capaz de construir um vínculo entre seu ato e as consequências geradas por ele. Assim, a prisão se mostra ineficaz justamente naquilo para o que ela foi criada: a responsabilização do delinquente.
            Se o encarceramento não gera responsabilização, ele não será capaz de recuperar esse condenado, de restaurar suas habilidades sociais. Isso se torna ainda mais claro quando se considera o ambiente prisional, a dinâmica dos relacionamentos interpessoais que lá se constroem e a ausência de responsabilidade pelo próprio sustento, que gerará um padrão de dependência na vida desse ofensor. Mais uma vez, a prisão falha, agora em seu objetivo de devolver à sociedade um cidadão recuperado, apto a reintegrar-se de forma responsável à comunidade.
            A Justiça Restaurativa traz para o centro a figura da vítima e do dano que lhe foi causado. Quanto ao ofensor, sua recuperação só será possível por meio da responsabilização efetiva por seus atos. Zehr afirma que

A verdadeira responsabilidade, portanto, inclui a compreensão das consequências humanas advindas de nossos atos - encarar aquilo que fizemos e a pessoa a quem o fizemos. Mas a verdadeira responsabilidade vai um passo além. Ela envolve igualmente assumir a responsabilidade pelos resultados de nossas ações. Os ofensores deveriam ser estimulados a ajudar a decidir o que será feito para corrigir a situação, e depois incentivados a tomar as medidas para reparar os danos. (ZEHR, 2008, p. 41).

Diante dessas considerações, as práticas de Justiça Restaurativa têm sido cada vez estudadas e seus resultados avaliados. Como vimos anteriormente, diversos países ao redor do mundo têm aplicado seus pressupostos, ampliando os programas restaurativos e reduzindo a resposta retributiva ao crime. No entanto, conforme nos ensina Delano Câncio Brandão,

A Justiça restaurativa primeiramente aflorou nos países que adotam o Commom Law, isso porque em tais países o princípio da oportunidade inerente ao sistema de justiça é compatível com o ideal restaurativo. No caso do Brasil, porém, onde vigora o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, não há essa abertura para a adoção de medidas alternativas. (BRANDÃO, 2010)

            No entanto, com o advento da Constituição Federal de 1988 e da Lei 9.099/1995, a aplicação da Justiça Restaurativa tornou-se uma possibilidade nos casos onde é possível identificar-se o princípio da oportunidade. Esses seriam aqueles casos em que a iniciativa da ação penal é privada e cabe ao ofendido provocar a ação jurisdicional. Nessas hipóteses, os envolvidos podem optar pela prática restaurativa como uma opção à via judicial. Brandão elenca as possibilidades disponibilizadas pela Lei 9.099/1995, que

“prevê a composição civil (art.74 e parágrafo único), a transação penal (art.76) e a suspensão condicional do processo (art.89. Nos termos da citada lei, tanto na fase preliminar quanto durante o procedimento contencioso é possível a derivação para o processo restaurativo, sendo que, nos crimes de ação penal privada e pública condicionada, há a possibilidade de despenalização por extinção da punibilidade através da composição civil e, nos casos de ação penal pública, utilizando-se o encontro para, além de outros aspectos da solução do conflito, se discutir uma sugestão de pena alternativa adequada, no contexto do diálogo restaurativo. Disso resulta que a experiência restaurativa pode ser aplicada na conciliação e na transação penal, a partir do espaço de consenso por ela introduzido, que permite o diálogo restaurativo, inclusive ampliado para contemplar outros conteúdos – emocionais, por exemplo – trazidos pelas partes e que podem ser colocados. (BRANDÃO, 2010) (grifo nosso).

            Brandão ainda acrescenta uma outra possibilidade de aplicação de práticas restaurativas: o Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003), em seu artigo 94, permite a aplicação de procedimentos restaurativos previstos na Lei 9.099/1995 a crimes contra idosos sujeitos a penas restritivas de liberdade inferiores a 4 anos.
            O Tribunal de Justiça do Distrito Federal tem sido reconhecido no Brasil por sua proatividade na aplicação de técnicas restaurativas. Em junho de 2004, instituiu uma comissão cujo objetivo era estudar a adaptabilidade da Justiça Restaurativa ao contexto do Distrito Federal e também desenvolver um projeto piloto na circunscrição do Núcleo Bandeirante, que foi inaugurado em 2005 e aplicava-se a infrações de menor potencial ofensivo.
            Em 2013, o TJDFT instituiu o Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania do Programa Justiça Restaurativa. Em publicação encontrada no site do Tribunal, a Justiça Restaurativa é vista

(...) como um novo modelo de resposta, possibilitando a aproximação entre as instituições formais de Justiça Criminal e o controle informal, por meio da participação ativa e interessada de todos os envolvidos em conflitos de natureza criminal, incluindo a própria comunidade. Assim, o sentido de justiça passa a significar a restauração dos traumas decorrentes do crime, o que ocorre pelo processo dialógico que se estabelece entre os interessados, os quais ocupam nesse modelo um espaço de participação e compreensão. (TJDFT, 2017) (grifo nosso).

            Percebe-se, assim, que a Justiça Brasileira tem reconhecido o valor da Justiça Restaurativa e, pouco a pouco, tem ampliado o seu campo de atuação. No entanto, como apontado acima, o princípio da indisponibilidade da ação penal é um fator restritivo para o avanço das práticas restaurativas. O próprio desconhecimento do assunto por parte da sociedade é um obstáculo imenso que impede que tais práticas sejam reconhecidas como respostas legítimas ao crime.

CONCLUSÃO

            O princípio da intervenção mínima é um dos princípios mais importantes do Direito Penal. Como vimos no início do presente artigo, o princípio da legalidade e da reserva legal não são suficientes para limitar o poder estatal e garantir as liberdades individuais dos cidadãos contra o Estado. O princípio da intervenção mínima restringe a atividade legiferante à tipificação de condutas que representem uma real ameaça ou ofensa a bens jurídicos relevantes. Além disso, deve-se verificar se há outras formas de controle social que poderiam ser suficientes para a prevenção do dano ao bem jurídico sob ataque, ou, constatado o delito, para a reparação do dano causado.
            É aqui que se insere a Justiça Restaurativa. Ela é uma resposta eficiente ao princípio da intervenção mínima, ao promover a busca pela solução de conflitos fora do âmbito judicial, por meio de práticas dialógicas, voluntárias e reparadoras. Os procedimentos restaurativos representam a humanização da justiça e possibilitam a busca da restauração de vidas e relacionamentos. Consequentemente, a relação que se estabeleceu entre intervenção mínima e Justiça Restaurativa é de fundamental importância para a concretização dos objetivos do Estado Democrático de Direito.
            A Justiça Restaurativa possibilita a concretização de garantias fundamentais e a efetivação de direitos fundamentais básicos. É evidente o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, princípio centralizador de nosso ordenamento jurídico, alçado a fundamento da República Federativa do Brasil, no inciso III, do artigo 1o de nossa Carta Magna. A justiça tradicional fracassou em sua função original de proporcionar segurança jurídica e responsabilização penal. Conforme demonstrado anteriormente, o encarceramento se mostrou triplamente ineficiente: no seu objetivo de responsabilização do condenado, de recuperação e reintegração do mesmo e de coibição do crime.
            Por meio das práticas restaurativas, as vítimas podem ser ouvidas, seus traumas podem ser tratados, sua cura, como afirma Zehr, pode ser efetivada, pois há a possibilidade de reparação, de restituição e até mesmo de perdão. Enquanto a justiça retributiva quebra o vínculo entre o delito e suas consequências, a Justiça Restaurativa liga-os diretamente, ao levar o ofensor a compreender a dimensão dos seus atos e as possibilidades de reparação que lhe estão disponíveis, possibilitando a efetivação da justiça. Aqui, cabe reproduzir as palavras de Howard Zehr, pois elas resumem o verdadeiro conceito de justiça:

Em vez de definir a justiça como retribuição, nós a definiremos como restauração. Se o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura. Atos de restauração – ao invés de mais violação – deveriam contrabalancear o dano advindo do crime. É impossível garantir recuperação total, evidentemente, mas a verdadeira justiça teria como objetivo oferecer um contexto no qual esse processo pode começar. (ZEHR, 2008, p. 176).

            Por fim, é necessário assumir que a aplicação dos ideais e procedimentos da Justiça Restaurativa não é tão simples como possa parecer. Como apontamos anteriormente, ela enfrenta diversos obstáculos. Um deles é o fato de que a participação dos envolvidos deve ser voluntária, ou seja, eles devem querer a restauração, por assim, dizer. O grande desafio, assim, é modificar a mentalidade de uma sociedade que foi ensinada, doutrinada e conduzida a ver na justiça retributiva, mais especificamente no encarceramento, a resposta adequada para a lesão aos seus direitos. O caminho para essa mudança passa pela educação, pela informação e pelo respeito.
            Axel Honneth em sua Teoria do Reconhecimento, afirma que um indivíduo só é capaz de atos de solidariedade quanto está inserido em um contexto de relações simétricas, no qual todos os envolvidos têm a possibilidade de autorrealização.  Isso só é possível quando o próprio indivíduo se reconhece de forma positiva, quando ele desenvolve autoconfiança. Saavedra e Sobottka (2008) afirmam que “esse desenvolvimento primário da capacidade de autoconfiança é visto por Honneth (2003, p. 168ss) como a base das relações sociais entre adultos. Honneth vai além e sustenta que o nível do reconhecimento do amor é o núcleo fundamental de toda a moralidade” (SAAVEDRA, SOBOTTKA, 2008, p. 11).
A primeira esfera em que o indivíduo experiencia o reconhecimento é a do amor e ela é violada já na primeira infância, por meio de maus tratos, pelo ataque à integridade psíquica do indivíduo. Percebe-se que “não é a integridade física que é violada, mas sim o autorrespeito (selbstverständliche Respektierung) que cada pessoa possui de seu corpo e que, segundo Winnicott, é adquirido por meio do processo intersubjetivo de socialização originado através da dedicação afetiva (HONNETH, 2003, p. 214ss)” (SAAVEDRA, SOBOTTKA, 2008, p. 15, grifo nosso). A análise da teoria do reconhecimento de Axel Honneth foge aos limites do presente trabalho, no entanto, ela oferece conceitos extremamente pertinentes para a discussão a respeito das práticas restaurativas de justiça.
Somente quando nos reconhecemos humanamente dignos podemos compreender o verdadeiro valor da humanidade. Somente assim estaremos aptos a respeitar a humanidade do outro e defende-la até onde for possível. Por mais anticientífico que possa parecer, o amor expresso nos relacionamentos interpessoais, principalmente no seio da família (e na primeira infância), é o elemento principal para a formação de uma sociedade justa, solidária e socialmente íntegra. Só é capaz de perdoar, quem encontra dentro de si uma força que desafia a lógica da retribuição. Essa força é o amor.





BIBLIOGRAFIA

ACHUTTI, D. S. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

ANDRADE, V. R. de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 3 ed.; rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015.

BITENCOURT, C. R. Tratado de direito penal: parte geral 1. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

BRANDÃO, D. C. Justiça Restaurativa no Brasil: Conceito, críticas e vantagens de um modelo alternativo de resolução de conflitos. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIII, n. 77, jun 2010. Disponível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7946>. Acesso em: 23 out. 2017.
SAAVEDRA, G. A., SOBOTTKA, E. A. Introdução à teoria do reconhecimento de Axel Honneth. In: Civitas, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 9-18, jan.-abr. 2008. Disponível em <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/4319/6864>. Acesso em: mar. 2017.

TJDFT. A Justiça Restaurativa – TJDFT. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, 2017. Disponível em: < http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-vice-presidencia/nupecon/justica-restaurativa/o-que-e-a-justica-restaurativa>. Acesso em: 23 out. 2017.
ZEHR, H. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. São Paulo: Palas Athena, 2008.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

La parole de la nuit dans "La Rue Cases-Nègres", de Joseph Zobel






  La littérature des Antilles est complemment differente de tout ce que j’ai eu l’opportunité de lire dans ma vie. Je suis particulièrement touchée par des romans (ou récits) et aussi par les oeuvres de critique littéraire. Et je croix que ce que m’a étonné le plus c’est justement la simplicité du discours qui touche profondément la sensibilité du lecteur. Nous sommes entrés dans une réalité historique très complexe et très douleureuse et, en même temps, nous avons connu l’incroyable capacité de l’être humain de se réfaire, de se mettre debout même devant des absurdités de la colonisation et de l’esclavage.
Joseph Zobel, l’auteur de « La Rue Cases-Nègres », est a mon avis, l’un des auteurs que j’ai lu qui a transmis les plus étonnantes images de la plantation, des familles des travailleurs, enfin de la situation générale que les mulâtres vivaient pendant cette période. Il a montré la condition pénible dans laquelle les femmes restaient, toujours absorbées par les soucis des enfants. Il a aussi présenté cette réalité misérable par les yeax d’un enfant et ce point de vue c’est magnifique, parce qu’il contient  quelque chose de cette opacité de dont nous parle Glissant. Alors, pour le gamin, il y a des choses qu’il ne comprend pas en vérité, il y a beaucoup de choses qu’il ne peu pas comprendre. Mais, même quand il ne comprend pas ces choses, il dit qu’il les « sent cruellemente »[1]. C’est ce qu’il dit quand il est mis « en pénitence ». Il a dû entendre de nouveau toute l’histoire de sa grand-mère, de sa mère et de loi-même. Une histoire tragique, remplie de tous les types de violences, humiliations et misères. Il ne comprend pas, mais il sent
Glissant, en parlant du « chaos-monde », nous a dit qu’un des problèmes de l’Ocident c’est justement la notion, ou la nécessité de compréhension. Cette avidité pour comprendre des choses (des cultures, des concepts, des personnes...) est l’origine du désir de dominer, d’accaparer et, de cette façon, il croit que la colonisation est un des produits de cet élan de « comprendre » toutes les choses. Glissant nous montre que l’Occident a perdu « la sensibilité à l’opaque »[2] (p. 127). Quand une personne perd la « sensibilité à l’opaque » elle en vient à chercher la transparence et elle n’accept  rien qu’elle ne puisse comprendre et quand elle pense qu’elle a compris elle décide que l’autre (sa culture, son monde) est inférieur et qu’il faut le dominer.
Mais, la question de l’opacité est encore plus profonde. Nous avons vu que la littérature créole est « la parole  de la nuit ». La nuit est la place par excellence de l’opacité. Alors, dans « La Rue Cases Nègres », l’enfant commence son récit en parlant du moment quand sa grand-mère arrive de la plantation. Le garçon aime se moment, quand il est libre pour jouer avec ses amis, et la nuit porte quelque chose de mystérieux qui fascine. Il dit : « ... la nuit est aussi une chose merveilleuse quand on y allume des flammes et qu’on chante » (p.14). La parole de la nuit était remplie des chansons, des histoires qui parlaient d’une origine presque perdue, d’une identité massacrée par l’esclavage et la colonisation. Bertène Juminer, en parlant de la parole de la nuit, dit que

La parole de nuit poursuivra son oeuvre de désaliénation, de réintegration, grâce au noyau familial qui nous fera entrer, dès notre plus tendre enfance, dans une sorte d’université uxorilocale, animée par un corps professoral du troisième âge, ayant pour tout viatique sa mémoire et son expérience de la souffrance.[3] (JUMINER, 1990, p. 139)

Alors, pour Juminer, c’est dans l’expérience de l’oralité du partage de la parole de nuit, que le peuple antillais va trouver sa désaliénation, sa réintégration. Par désaliénation nous pouvons comprendre la fuire de ce processus d’éclairement. C’est la sensibilité et non la comphéhension qui va révéler l’identité perdue. Ralph Ludwig explique que, la rupture entre l’oralité et l’écriture est la rupture entre l’individu et la société, parce que

L’écriture commence son récit  permet certes d’étendre la mémoire d’un peuple à l’infini, mais le rapport entre cette mémoire et la société se perd, personne n’ayant accès à la totalité de la mémoire écrite d’un peuple.[4] (LUDWIG, 1990, p. 16).


            De cette façon, la littérature des auteurs créoles comme Joseph Zobel est tellement importante parce que ce sont des oeuvres écrits, mais qui portent l’oralité dans le contenu, les choix lexicaux, le « rythme de la narration » (p. 18), comme nous le montre Ludwig. En prenant la fonction de griot, ou de conteur, les auteurs antillais transmettent une « histoire paraléle », selon Juminer, une historie « issue de la nuit des temps, mais tout aussi fragile, car tributoire de la seule oralité, alimentée par sa propre récitation »[5] (JUMINER, 1990, p. 148).
            Il est possible d’affirmer que l’Occident, avec ses tentatives d’éclairement et de comprehénsion a échoué dans sa réponse aux questions existencielles auxquelles nous faisons face aujourd’hui. Peut-être que les réponses se trouvent dans l’opacité de la nuit. 

Lorena Brandizzi
16/05/2016


[1] ZOBEL, Joseph. La rue Cases-Nègres. Paris : Présence Africaine, 1974.
[2] GLISSANT, Édouard. Le chaos-monde, loral et l’écrit. In : Ecrire la ‘parole de nuit’ – La nouvelle littérature antillaise (Paris, Gallimard, coll. ‘Folio Essais’, nº 239, 1990, 192p.), pp. 111-130.
[3] LUDWIG, Ralph. Ecrire la parole de nuit. In : Ecrire la ‘parole de nuit’ – La nouvelle littérature antillaise (Paris, Gallimard, coll. ‘Folio Essais’, nº 239, 1990, 192p.), pp. 13-25.
[4] LUDWIG, Ralph. « Ecrire la parole de nuit », art. cit. p. 16
[5] JUMINER, Bertène. La parole de nuit. In : Ecrire la ‘parole de nuit’ – La nouvelle littérature antillaise (Paris, Gallimard, coll. ‘Folio Essais’, nº 239, 1990, 192p.), pp. 131-150.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

Análise do Poema "Redenção", de Antero de Quental




 

Redenção

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, n’um sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das cousas mudas; salmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do Mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!

                                    Antero de Quental

            A poesia, por mais subjetiva que se presuma ser, revela contradições que pertencem ao mundo objetivo. Adorno ensina que o teor social da lírica advém daquilo que há nela de espontâneo. A própria materialidade do poema já revela contradições significativas. O poema em análise apresenta-se sob a forma de um soneto, uma forma recorrente, clássica. O conteúdo de Redenção, no entanto, não é clássico: é tipicamente moderno. Os versos decassílabos apresentam rimas consoantes, interpoladas no primeiro e no segundo quarteto. Os dois primeiros versos de cada terceto rimam entre si e há uma rima final entre os dois tercetos. Apesar de toda essa técnica, de todo esse controle que se revela no trabalho de metrificação dos versos (a maioria deles é de versos heróicos, acentuados na 6a e na 10a sílabas), o conteúdo do poema revela um espírito irrequieto, atormentado, às portas do descontrole.
            Observa-se o fenômeno da coliteração já na primeira estrofe, onde se percebe a alternância simétrica entre as consoantes |z| e |s|. Esse fenômeno se repete nos três primeiros versos do poema. A aparição reiterada do fonema sonoro, o |z|, cria a impressão do zum zum zum característico do encontro de muitas vozes. Na segunda estrofe percebe-se a aliteração do fonema surdo |s| no início da segunda palavra dos terceiro e quarto versos, passando a impressão sonora típica de um suspiro.
            Na terceira estrofe do poema há coliteração das consoantes |p| e |b| em “esrito” e “habita” e das consoantes |t| e |d| em “habita” e “imensidade”. Percebe-se que há uma espécie de rima interna em que se dá a homofonia vocálica do “i” e do “a”, com diversidade nas consoantes labiais, no primeiro caso, e dentais no segundo. Entretanto essa divergência consonantal é suave, pois trata-se apenas da presença ou ausência de sonoridade. Ao iniciar a terceira estrofe com este efeito, o poeta cria um estranhamento, ou melhor, um despertar no leitor. Esse estranhamento já estava sendo preparado desde o início da segunda estrofe. O leitor, ao iniciar a leitura do poema, é de certa forma embalado pelos fonemas aspirados abundantes na primeira estrofe. Na segunda estrofe, já são introduzidos, em maior número, alguns fonemas oclusivos (|p|, |t|) que começam a quebrar aquele efeito aveludado proposto anteriormente, entretanto, não há um contraste forte, não há coliteração. O primeiro terceto cria um choque ao iniciar-se com o embate dos fonemas surdos e sonoros em um único verso. Com efeito, é nesse terceto que o eu-lírico põe de lado, por alguns instantes, o lamento da natureza, para tratar do seu desejo de liberdade, um desejo que se materializa em gestos abruptos, em atentados de fuga. Os próprios verbos que finalizam o terceto encarnam a natureza abrupta do desejo de liberdade: uma ânsia que agita e abala. Não se trata mais de um canto que embala ou de um queixume que se materializa em forma de suspiro, mas o que o poeta passa a narrar é o ímpeto fugitivo que se percebe sob a ânsia de liberdade que aproxima a natureza e o homem, que torne a alma da natureza irmã da alma humana, assim como o tormento, na primeira estrofe, igualava, por assim dizer, homem e natureza. A última estrofe apresenta de forma reiterada fonemas nasais que dão a impressão de continuidade: depois de passado o baque, o choque dos movimentos que agitam e abalam as formas fugitivas, o eu-lírico pode enfim “compreender”, e essa compreensão é dialógica. Ele pode enfim compreender a irmandade entre a sua alma e a alma das vozes que vem cantando, uma irmandade que se perdeu ao longo do processo civilizatório.
            Toda essa dinâmica interna ao poema deve-se à natureza da própria arte. A arte se apresenta como uma promessa de reencontro do homem com a natureza, pois o trabalho artístico (a poesia, “poier”, o fazer poético) não se submete a fins pragmáticos. O homem, inicialmente, transformava a natureza por meio do trabalho e, dessa forma, se transformava a si mesmo. Ele passou a dominar a natureza por intermédio do trabalho, mas foi também por meio do trabalho que o homem pode se libertar gradativamente, mas não completamente, da dependência das condições naturais do seu ambiente. No entanto, com o advento da modernidade (e principalmente do capitalismo) o trabalho se transformou em um meio de dominação do próprio homem e perdeu o seu caráter libertador: o trabalho moderno é, por assim dizer, um trabalho que escraviza. Entretanto, ainda há um trabalho que liberta: o fazer poético.
            O trabalho é responsável pelo desligamento do homem da natureza, assim como a linguagem: apenas o ser humano é dotado de linguagem (não entraremos na questão da comunicação animal por tratar-se de um fenômeno diverso do da linguagem humana, uma linguagem caracteristicamente verbal). Dessa forma, a linguagem assim como o trabalho é um elemento que faz a mediação entre o homem e a natureza. A “identificação do homem com a natureza” citada por Adorno[1] (2003, p.70) só é possível mediante a mediação. Retomando a questão da arte como uma promessa de retorno à natureza, percebemos que o fazer poético, o trabalho artístico, confere ao homem o poder de humanizar a natureza. A ruptura entre o homem e a natureza deveu-se justamente a um afastamento entre o humano e o natural. O homem é dotado de humanidade, de uma natureza humana (por mais paradoxal que tal expressão possa parecer dentro do contexto da discussão). A natureza, por sua vez, não é humana, é selvagem, deve ser dominada. Ao humanizar a natureza, o eu-lírico faz o caminho de volta, e esse é o único caminho que está disponível, pois não lhe é possível “desumanizar-se”; para tanto teria de abrir mão da linguagem, o que impossibilitaria o fazer poético. Dessa forma, o poeta (não se trata da Antero de Quental, mas do poeta enquanto ofício, do sujeito poético representando um sujeito coletivo) escolhe trilhar o único caminho que lhe foi granjeado em busca do retorno à natureza, ele opta por buscar a promessa que a arte lhe fez, uma promessa de reconciliação.
            É o que se percebe em Redenção, quando o eu-lírico dota de voz o mar, as árvores e o vento. A humanização da natureza se dá de forma gradativa ao longo do poema. No início a natureza é dotada de voz, um elemento humano, mas que, em última análise, pode ser entendido como um elemento puramente fisiológico. No entanto, essa voz se transmuta em canto, um canto que pode embalar o sono atormentado do eu-lírico. Apesar de ser também uma capacidade humana, a de cantar (os pássaros também cantam, mas a definição do canto é algo humano, pois se não fosse a racionalidade humana o canto dos pássaros seria puro som), pode-se dizer que ainda se trata de uma habilidade fisiológica, física. Porém, o que dizer do fato de a natureza possuir (“vosso”) tormento? A partir desse ponto, a natureza passa a ser dotada de características tipicamente humanas, do campo das emoções e, mais à frente, do campo das volições: ela passa a ter vontade. Na segunda estrofe, a natureza é apresentada como capaz de lamentar-se, de queixar-se de seu tormento por meio de suspiros. A partir da terceira estrofe ela não apenas queixa-se passivamente, ela deseja, ela “anseia” libertar-se e essa ânsia é cruel e violenta, tão violenta que agita e abala “as formas fugitivas”. É a partir dessa constatação, dessa “quase visão”, que o eu-lírico passa a compreender a linguagem do mar, das árvores que habitam as selvas, do vento que preenche a montanha; ele compreende que a identidade entre o homem e a natureza deve-se justamente àquilo que os separou, eis a contradição maior: deve-se à dominação. Eis que agora ambos são cativos, cativos de um processo irreversível, o processo de dominação da natureza pelo homem, do homem pelo homem e, em um futuro próximo (se nos for possível sugerir tão escatológico cenário), uma dominação do homem pela natureza.
            É nesse ponto que se percebe que há uma armadilha na promessa a que nos referimos anteriormente, a promessa da arte de uma reconciliação entre o homem e a natureza. Essa armadilha estava já sugerida na primeira estrofe do poema, quando o eu-lírico delimita o espaço de seu poema: o canto que ouve, ele o ouve em sonho. A reconciliação não é possível, assim como não era possível para Portugal retomar o seu lugar de glória dentro do cenário europeu. Tão irreversível quanto o processo de dominação da natureza pelo homem é o capitalismo. Portugal não poderia reconciliar-se com os seus anos de ouro, não poderia retomar o seu lugar de prestígio na Europa, pois o seu papel dentro da mesma modernidade que trouxe o capitalismo era um papel subalterno, o papel de periferia. O atraso de Portugal era a sua forma de participar da modernidade capitalista, uma modernidade que traz como característica a desintegração, a degradação, por mais que a globalização pareça justamente o contrário. A poesia se mostra como o espaço por excelência para a expressão de todas essas contradições, de toda essa tensão. Por tal motivo é que Adorno sugere que o fundamento de toda lírica individual seja “uma corrente subterrânea coletiva” (2003, p.77)[2]. Por mais subjetivo que pareça ser o poema, por mais alienado que ele venha a se mostrar, diante de uma leitura que se recuse a ser superficial ou ingênua, ele revelará um conjunto de contradições, toda aquela tensão para a qual não havia espaço no calor dos movimentos sociais.


[1] ADORNO, Theodor W. “Palestra sobre lírica e sociedade” in Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2003.
[2] Idem

segunda-feira, 31 de julho de 2017

Cidadania no Brasil



 
Texto: CARVALHO. José Murilo de. “Introdução: Mapa da viagem.” ; “Conclusão: A cidadania na encruzilhada” Em Cidadania no Brasil O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp. 7-13; 219-229

            Carvalho traz uma reflexão extremamente pertinente a respeito dos caminhos percorridos pela democracia brasileira rumo à conquista da cidadania. O autor explica que o fim da ditadura militar, em 1985, criou grandes expectativas em relação aos resultados que seriam gerados pela redemocratização. No entanto, essas expectativas não foram completamente satisfeitas. Segundo Carvalho, conquistou-se a garantia da liberdade de pensamento e de manifestação e a garantia da participação pelo voto, mas ainda resta um longo caminho rumo à conquista de segurança, emprego, desenvolvimento e justiça social. Como consequência, tem-se o desgaste das instituições democráticas já implementadas.
            Para Carvalho, o que está no cerne desse descompasso é o “problema da cidadania”. O autor expliqua que “o exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como  a segurança e o emprego” (CARVALHO, 2009, p. 8). Apesar de uma cidadania plena, que alcance todas essas garantias, ser um ideal talvez inatingível, torna-se necessária enquanto norte e parâmetro. Essa cidadania plena abarcaria direitos civis, políticos e sociais. A garantia dos direitos civis (fundamentais) dependeria de uma “justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos” (CARVALHO, 2009, p. 9). Os direitos políticos dizem respeito à participação da sociedade em seu próprio governo. Por último, os direitos sociais vinculam-se à ideia de distribuição de riquezas e justiça social.
            O autor, fazendo referência a T. A. Marshall, explica que a conquista desses direitos seguiu uma certa sequência lógica na Inglaterra: primeiramente, surgiram lá os direitos civis, depois os políticos e por fim, houve a conquista dos direitos sociais, no século XX. A educação popular, apesar de reconhecida como um direito social, foge a essa sequência, pois está na base da conquista de todos os outros direitos, por permitir que os indivíduos se reconhecessem enquanto sujeitos daqueles direitos e lutassem por eles. Carvalho assume que não há um único caminho para a construção da cidadania plena, mas afirma que caminhos diferentes geram cidadanias diferentes. Segundo o autor, o Brasil se diferencia da Inglaterra, nessa questão, por duas razões: a ênfase nos direitos sociais e a inversão completa na ordem de surgimento/implementação dos direitos.
            Em seguida, Carvalho explicita um outro aspecto histórico da cidadania: seu desenvolvimento vinculado ao surgimento do Estado-nação. Para o autor, “a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. [Elas] se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado” (CARVALHO, 2009, p. 12). O autor aborda a crise do Estado-nação, inserida no contexto da internacionalização do capitalismo, dos avanços tecnológicos e da criação de blocos econômicos e políticos, que acabaram por reduzir o poder dos Estados.
            No capítulo de conclusão, é retomado o problema da cidadania no Brasil. De forma mais clara, Carvalho se posiciona a respeito do caráter prejudicial daquela inversão cronológica dos direitos que aqui se deu. A implementação dos direitos sociais em um momento de “supressão dos direitos políticos e redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular” (CARVALHO, 2009, p. 219) criou aqui uma cultura de valorização do Poder Executivo, uma “estadania”, como o autor a denomina. Como consequência, a sociedade não valoriza a representação e vê escapar de suas mãos importantes direitos civis. Além disso, há prejuízo em sua capacidade de organização e os representantes do Poder Legislativo são desprezados, ao mesmo tempo em que são vistos como fonte de favores pessoais.
            Carvalho acredita que, apesar da gravidade da situação, há esperança para o Brasil, que ainda não sofre de mazelas mais graves, como a redução extrema do papel do Estado e o apagamento da identidade nacional, que estão afetando países da União Europeia. Para o autor, a esperança aqui reside em duas experiências que, para ele, sugerem otimismo: “o surgimento das organizações não-governamentais que, sem serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse público” (CARVALHO, 2009, p. 227) e experiências de prefeituras que têm procurado envolver a população na “formulação e execução de políticas públicas, sobretudo no que tange ao orçamento e às obras públicas” (CARVALHO, 2009, p. 228).        
            Por fim, o autor alerta para o risco da cultura do consumo, que ameaça o avanço democrático ao criar na sociedade uma valorização maior do direito ao consumo, do que dos direitos políticos. Segundo Carvalho, essa cultura dificulta a busca pela solução do problema da cidadania, impedindo que o sistema democrático resolva o grande problema da desigualdade que para o autor é a nova escravidão: “a desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática” (CARVALHO, 2009, p. 229).

A norma culta e o português jurídico

  Por que os textos oficiais devem obedecer às regras gramaticais da língua portuguesa? Uma análise do inciso V do art. 5º da Portaria...