segunda-feira, 31 de julho de 2017

Cidadania no Brasil



 
Texto: CARVALHO. José Murilo de. “Introdução: Mapa da viagem.” ; “Conclusão: A cidadania na encruzilhada” Em Cidadania no Brasil O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. pp. 7-13; 219-229

            Carvalho traz uma reflexão extremamente pertinente a respeito dos caminhos percorridos pela democracia brasileira rumo à conquista da cidadania. O autor explica que o fim da ditadura militar, em 1985, criou grandes expectativas em relação aos resultados que seriam gerados pela redemocratização. No entanto, essas expectativas não foram completamente satisfeitas. Segundo Carvalho, conquistou-se a garantia da liberdade de pensamento e de manifestação e a garantia da participação pelo voto, mas ainda resta um longo caminho rumo à conquista de segurança, emprego, desenvolvimento e justiça social. Como consequência, tem-se o desgaste das instituições democráticas já implementadas.
            Para Carvalho, o que está no cerne desse descompasso é o “problema da cidadania”. O autor expliqua que “o exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como  a segurança e o emprego” (CARVALHO, 2009, p. 8). Apesar de uma cidadania plena, que alcance todas essas garantias, ser um ideal talvez inatingível, torna-se necessária enquanto norte e parâmetro. Essa cidadania plena abarcaria direitos civis, políticos e sociais. A garantia dos direitos civis (fundamentais) dependeria de uma “justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos” (CARVALHO, 2009, p. 9). Os direitos políticos dizem respeito à participação da sociedade em seu próprio governo. Por último, os direitos sociais vinculam-se à ideia de distribuição de riquezas e justiça social.
            O autor, fazendo referência a T. A. Marshall, explica que a conquista desses direitos seguiu uma certa sequência lógica na Inglaterra: primeiramente, surgiram lá os direitos civis, depois os políticos e por fim, houve a conquista dos direitos sociais, no século XX. A educação popular, apesar de reconhecida como um direito social, foge a essa sequência, pois está na base da conquista de todos os outros direitos, por permitir que os indivíduos se reconhecessem enquanto sujeitos daqueles direitos e lutassem por eles. Carvalho assume que não há um único caminho para a construção da cidadania plena, mas afirma que caminhos diferentes geram cidadanias diferentes. Segundo o autor, o Brasil se diferencia da Inglaterra, nessa questão, por duas razões: a ênfase nos direitos sociais e a inversão completa na ordem de surgimento/implementação dos direitos.
            Em seguida, Carvalho explicita um outro aspecto histórico da cidadania: seu desenvolvimento vinculado ao surgimento do Estado-nação. Para o autor, “a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. [Elas] se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado” (CARVALHO, 2009, p. 12). O autor aborda a crise do Estado-nação, inserida no contexto da internacionalização do capitalismo, dos avanços tecnológicos e da criação de blocos econômicos e políticos, que acabaram por reduzir o poder dos Estados.
            No capítulo de conclusão, é retomado o problema da cidadania no Brasil. De forma mais clara, Carvalho se posiciona a respeito do caráter prejudicial daquela inversão cronológica dos direitos que aqui se deu. A implementação dos direitos sociais em um momento de “supressão dos direitos políticos e redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular” (CARVALHO, 2009, p. 219) criou aqui uma cultura de valorização do Poder Executivo, uma “estadania”, como o autor a denomina. Como consequência, a sociedade não valoriza a representação e vê escapar de suas mãos importantes direitos civis. Além disso, há prejuízo em sua capacidade de organização e os representantes do Poder Legislativo são desprezados, ao mesmo tempo em que são vistos como fonte de favores pessoais.
            Carvalho acredita que, apesar da gravidade da situação, há esperança para o Brasil, que ainda não sofre de mazelas mais graves, como a redução extrema do papel do Estado e o apagamento da identidade nacional, que estão afetando países da União Europeia. Para o autor, a esperança aqui reside em duas experiências que, para ele, sugerem otimismo: “o surgimento das organizações não-governamentais que, sem serem parte do governo, desenvolvem atividades de interesse público” (CARVALHO, 2009, p. 227) e experiências de prefeituras que têm procurado envolver a população na “formulação e execução de políticas públicas, sobretudo no que tange ao orçamento e às obras públicas” (CARVALHO, 2009, p. 228).        
            Por fim, o autor alerta para o risco da cultura do consumo, que ameaça o avanço democrático ao criar na sociedade uma valorização maior do direito ao consumo, do que dos direitos políticos. Segundo Carvalho, essa cultura dificulta a busca pela solução do problema da cidadania, impedindo que o sistema democrático resolva o grande problema da desigualdade que para o autor é a nova escravidão: “a desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática” (CARVALHO, 2009, p. 229).

A mídia e a construção da identidade nacional do cidadão brasileiro

   


INTRODUÇÃO 


O acesso à informação por intermédio dos meios de comunicação de massa é visto, por grande parte da população, como o meio mais eficaz e rápido de se informar a respeito de problemas da atualidade, política, segurança pública, entre outros. No entanto, a sociedade brasileira não tem uma cultura crítica e recebe de forma passiva grande parte das informações trazidas pelos noticiários e programas televisivos.
            Dessa forma, em momentos de crise, a sociedade passa a se apoiar quase que exclusivamente nos pontos de vista e abordagens apresentados de forma recorrente pela televisão e pelos jornais e revistas de grande circulação. Um dos riscos apresentados por essa tendência é o condicionamento ideológico da população na direção apontada pela mídia e o seu consequente condicionamento comportamental. Em tempos de crise, a mídia tende a focar em assuntos polêmicos, mais passíveis de alcançar audiência, muitas vezes sem se abster de apresentar um posicionamento ideológico específico, seja pelo enfoque ou recorte, seja pela expressão explícita de opiniões em programas mais voltados para discussões políticas.
            Há uma necessidade urgente de conscientização da população a respeito dos mecanismos de condicionamento da mídia e dos processos subjacentes à construção de significados por parte dos meios de comunicação de massa. O presente artigo tem como objetivo apresentar uma hipótese de resposta para a questão: até que ponto a mídia pode ser responsabilizada pela fragmentação da comunidade nacional e pela formação de uma identidade nacional impregnada pela corrupção, pela impotência e pela escassez?
            No primeiro tópico abordaremos o conceito de identidade nacional e o papel da mídia no processo de formação da identidade subjetiva, ponto a ser retomado no penúltimo tópico. No segundo tópico, discutiremos alguns mecanismos de condicionamento econômico da política para, em seguida, voltarmos nossa atenção para a mídia e sua relação com fenômenos de natureza política. No terceiro tópico, analisaremos a relação da sociedade com a mídia a partir do fenômeno Framing Effect e do processo de condicionamento comportamental da população a partir da construção de uma consciência política. Ainda nesse tópico apresentaremos a hipótese de que a mídia participa de forma ativa do fenômeno de fragmentação da comunidade nacional por meio da influência negativa que exerce no processo de construção da identidade nacional, uma identidade maculada pela corrupção, pela impotência e pela escassez. No quarto tópico e na conclusão buscaremos apresentar um caminho possível para a reconstrução de uma identidade nacional que venha a caracterizar-se pela autonomia, pela independência e pela participação política ativa: o caminho da educação.

1 IDENTIDADE NACIONAL


            A discussão a respeito do conceito de identidade nacional é antiga. Muitos autores questionam a validade desse conceito. No entanto, há um certo consenso a respeito da natureza social da formação identitária do indivíduo. Em seu artigo “Literatura e Identidade Nacional”, Zilá Bernd procurou “estabelecer as dominantes literárias (convenções dominantes) do processo que vai da autonomização à construção de uma identidade nacional” (BERND, 1992, p. 9). Apesar de se tratar de uma obra cujo enfoque predominante é a crítica literária, seu texto apresenta alguns questionamentos pertinentes para a questão aqui problematizada. A autora explica que o desenrolar do seu trabalho dependia originariamente de uma reflexão a respeito do próprio conceito de identidade. Para tanto, Bernd recorre a teóricos externos à área da Literatura. Essa estratégia enriquece profundamente seu trabalho. A autora assume o caráter eminentemente social do processo de construção da identidade, tanto individual quanto coletiva.

(...) a questão da identidade nacional será encarada como um dos pólos de um processo dialético; portanto, como ‘meio’ indispensável para entrar em relação com o outro, e não como um ‘fim’ em si mesmo. A busca da identidade deve ser vista como processo, em permanente movimento de descolamento, como travessia, como uma formação descontínua que se constrói através de sucessivos processos de reterritoriazação e desterritorização, entendendo-se a noção de território (DELEUZE & GUATTARI, 1977) como o conjunto de representações que um indivíduo ou um grupo tem de si próprio. (BERND, 1992, p. 10).

            Fundamentando-se na definição de Lévi-Strauss, Bernd afirma que não há possibilidade de um indivíduo definir sua identidade sem fazer referência ao outro. Segundo a autora, a exclusão do outro levaria a uma “visão especular”, ou seja, apenas à replicação do próprio eu.

Lévi-Strauss (1977) definiu identidade como uma entidade abstrata, sem existência real, mas indispensável como ponto de referência. (...) A identidade é um conceito que não pode afastar-se do de alteridade: a identidade que nega o outro, permanece no mesmo (idem). Excluir o outro leva à visão especular que é redutora: é impossível conceber o ser fora das relações que o ligam ao outro. (BERND, 1992, p. 15) (grifo nosso).

Aplicando os conceitos até aqui apresentados, podemos fazer uma referência ao poder da mídia no processo de construção da identidade nacional. A busca pelo conhecimento e pela informação sempre caracterizou o ser humano e a formação de uma identidade individual passa necessariamente, como vimos, pela construção de um conhecimento de mundo e do lugar do eu nesse mundo. Dessa forma, a curiosidade representa uma ferramenta bastante eficaz no processo de construção dessa identidade. Ela é uma das características mais marcantes que possuímos e aquela que tem nos levado a evoluir ao longo da história, buscando a satisfação de necessidades e a superação de obstáculos naturais.
Dentro desse aspecto, a urgência do ser humano em estar informado representa uma estratégia para a manutenção de uma identidade subjetiva coerente, sob o ponto de vista da modernidade. Sendo assim, a busca de informações nos meios de comunicação de massa representa uma tentativa de sanar essa necessidade de atualização, tão central para a manutenção de um senso de pertencimento por parte do individuo. Bernd aborda esse aspecto da busca do conhecimento de si e faz menção a uma tensão que está na origem da formação da consciência individual:

Trata-se, pois de apreender a identidade como uma entidade que se constrói simbolicamente no próprio processo de sua determinação. A consciência de si toma sua forma na tensão entre o olhar sobre si próprio – visão do espelho, incompleta – e o olhar do outro ou do outro de si mesmo – visão complementar. (BERND, 1992, p. 15).

É inegável que essa “visão complementar”, esse “olhar do outro”, só é acessível por meio das relações sociais. É no contato social que o ser humano tem acesso a esse ponto de vista externo, tão necessário para a construção da consciência de si. Sem essa tensão entre o olhar sobre si próprio e o olho do outro, a imagem que o indivíduo forma de si mesmo é incompleta e, consequentemente, insuficiente para o sucesso daquele processo de determinação a que Bernd faz referência. Como apontado anteriormente, a busca desse ponto de vista externo nos meios de comunicação de massa já se tornou um hábito social. Por meio desse contato com a mídia, o indivíduo passa a interpretar sua realidade sob perspectivas diversas, sob ângulos que anteriormente desconhecia. A partir desse novo conhecimento, a sua visão sobre si mesmo, sobre sua história, sobre seu lugar no mundo é irreversivelmente alterada.
A respeito da persistência desse comportamento caracterizado pela busca de informação nos meios de comunicação de massa, podemos recorrer a Castro (2009) e sua hipótese a respeito da satisfação de necessidades. Segundo Castro (2009), o ser humano não se basta a si mesmo, mas “tem necessidades biopsíquicas e socioculturais, além de outras complementares, delas decorrentes para manter-se vivo e coexistir com os semelhantes em dada configuração geotemporal” (pg. 91). Castro explica que, ao passar por uma necessidade, o homem sofre um desequilíbrio que causa uma tensão. A partir dessa tensão cria-se uma tendência à ação, com vistas à satisfação daquela necessidade primeira. A crença na eficácia do comportamento adotado é difundida dentro dos grupos por meio da cultura, levando à persistência do comportamento, à sua institucionalização. A hipótese de Castro parece bastante adequada para a difusão do hábito moderno da busca pela informação nos meios de comunicação de massa.
            A questão a ser respondida diz respeito às condições em que a mídia passa a influenciar a construção da identidade subjetiva dos indivíduos e como essa influência se expande a ponto de alcançar a formação da própria identidade nacional de um país.


2 A MÍDIA E AS REPRESENTACÕES SOCIOCULTURAIS


            A busca pelas respostas a essas questões passa pela análise do discurso midiático e dos seus processos de condicionamento. Segundo Charaudeau (2006), o indivíduo entra em contato com diversas representações da realidade que acabam por construir em sua mente um sistema de imagens mentais que o indivíduo passa a interpretar como a própria realidade. Esse processo de interpretação da representação como realidade evolui a tal ponto que o indivíduo passa a pautar nele o seu discurso e seus valores.

As representações, ao construírem uma organização do real através de imagens mentais transpostas em discurso ou em outras manifestações comportamentais dos indivíduos que vivem em sociedade, estão incluídas no real, ou mesmo dadas como se fossem o próprio real. Elas se baseiam na observação empírica das trocas sociais e fabricam um discurso de justificativa dessas trocas, produzindo-se um sistema de valores que se erige em norma de referência. Assim é elaborada uma certa categorização social do real, a qual revela não só a relação de “desejabilidade” que o grupo entretém com sua experiência do cotidiano, como também o tipo de comentário de inteligibilidade do real que o caracteriza – uma espécie de  metadiscurso revelador de seu posicionamento. Em resumo, as representações apontam para um desejo social, produzem normas e revelam sistemas e valores. (CHARAUDEAU, 2006, p. 47) (grifo nosso).

            O problema de tal conjuntura reside no fato de que o discurso midiático não é neutro: há condicionamentos econômicos e políticos que influem sobre a informação ali veiculada. Quando o indivíduo não tem consciência desses condicionamentos, aquelas “imagens mentais” a que Charaudeau faz referência se tornam projeções distorcidas da realidade. Retomando o ponto apresentado no tópico anterior, a respeito da construção da consciência sobre si, podemos compreender o risco que aqui se apresenta: o indivíduo constrói uma imagem distorcida de si mesmo, a partir daquele referencial enviesado construído pela mídia. 

2.1 O CONDICIONAMENTO ECONÔMICO DA MÍDIA (CULTURA DOS MEDIA)


            Alguns autores acreditam que, com o advento do capitalismo, a economia se tornou o fator central das relações em sociedade, condicionando grande parte dos processos de interação social. Como apontado anteriormente, o acesso aos meios de comunicação de massa se tornou um hábito estabelecido e isso não passou em branco aos olhos do mercado. Dessa forma, a compreensão do viés comercial das mensagens midiáticas se torna necessária para que o indivíduo se torne capaz de posicionar-se criticamente em sua relação de interlocutor com a mídia.
            João Pissara Esteves (2000), ao tratar da questão da identidade e da cultura dos media, alerta para o fato de que a lógica comercial se apresenta como pano de fundo para toda interação entre a mídia e seus “consumidores”. Citando Kellner (1995)[1], o autor salienta que a pós-modernidade não trouxe um rompimento com o capital e com a economia política, ao contrário, essa nova ordem social trouxe consigo uma lógica inescapável: a lógica do dinheiro.

Seja através de um consumo diferenciado (pela publicidade, as relações públicas ou o marketing), seja através de um consumo direto (as mensagens mediáticas como um “produto” em si e as audiências formatadas como “clientelas”), as formas pós-modernas que proliferam no interior dos media não deixaram de obedecer a uma lógica comercial inteiramente convencional: os registros culturais em geral dos media, independentemente do seu estilo (pós-moderno, moderno ou tradicional, isoladamente ou em combinação), são ordenados por uma estratégia global dominante – a diferenciação dos públicos e a segmentação do mercado como processos mais eficazes de homogeneização geral, com estritos fins de lucro. (ESTEVES, 2000, p. 25) (grifo nosso).

            Segundo Martin e Schumann (1999), o fator econômico se tornou maior até mesmo que o fator político. Dessa forma, muitas questões que parecem políticas aos olhos do público em geral têm, por pano de fundo, motivações intrinsecamente econômicas. É interessante notar a visão dos autores a respeito da natureza unificadora do fator econômico. Apesar de o mundo estar cada vez menor, cada vez mais unificado comercialmente, do ponto de vista político, ele se mostra irremediavelmente fragmentado. Para os autores, economia e política seguem ritmos diferenciados e o descompasso entre elas tem gerado uma tensão que está na base de grandes problemas sociais.

O maior problema da nossa geração consiste em que os fatos econômicos superam tanto os políticos que economia e política não conseguem manter o mesmo ritmo. Economicamente, o mundo tornou-se uma unidade comercial. Politicamente, continuou fragmentado. As tensões entre os dois desenvolvimentos opostos provocaram um abalo em cadeia na vida societária da humanidade. (MARTIN, SCHUMANN, 1999, p. 21).

            Percebe-se que a questão da fragmentação política das comunidades nacionais é central para a discussão da própria fragmentação da personalidade individual dos cidadãos. A noção de cidadania, por sua vez, está na base da participação política, do auto-reconhecimento do indivíduo enquanto parte integrante da sociedade, capaz de influenciar sua própria realidade, alterá-la, crescer e se desenvolver. E no cerne dessa questão encontra-se o problema da fragmentação política. Como veremos a seguir, a expansão do sistema capitalista e a proliferação da cultura do consumo têm desempenhado um papel crucial no retrocesso que a cidadania tem sofrido na sociedade brasileira.

2.2 A QUESTÃO DA CIDADANIA

José Murilo de Carvalho aborda de forma bastante clara o “problema da cidadania” em seu livro “Cidadania no Brasil: O longo caminho” (2009). Carvalho traz uma reflexão extremamente pertinente a respeito dos caminhos percorridos pela democracia brasileira rumo à conquista da cidadania. O autor explica que o fim da ditadura militar, em 1985, criou grandes expectativas em relação aos resultados que seriam gerados pela redemocratização. No entanto, essas expectativas não foram completamente satisfeiras. Segundo Carvalho, conquistou-se a garantia da liberdade de pensamento e de manifestação e a garantia da participação pelo voto, mas ainda resta um longo caminho rumo à conquista de segurança, emprego, desenvolvimento e justiça social. Como consequência, tem-se o desgaste das instituições democráticas já implementadas.
            Para Carvalho, o que está na origem desse descompasso é o “problema da cidadania”. O autor expliqua que “o exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como  a segurança e o emprego” (CARVALHO, 2009, p. 8). Apesar de uma cidadania plena, que alcance todas essas garantias, ser um ideal talvez inatingível, torna-se necessária enquanto norte e parâmetro. Essa cidadania plena abarcaria direitos civis, políticos e sociais. A garantia dos direitos civis (fundamentais) dependeria de uma “justiça independente, eficiente, barata e acessível a todos” (CARVALHO, 2009, p. 9). Os direitos políticos dizem respeito à participação da sociedade em seu próprio governo. Por último, os direitos sociais vinculam-se à ideia de distribuição de riquezas e justiça social.
            Para Carvalho a cidadania tem seu desenvolvimento vinculado ao surgimento do Estado-nação, pois “a construção da cidadania tem a ver com a relação das pessoas com o Estado e com a nação. [Elas] se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado” (CARVALHO, 2009, p. 12). Nesse ponto, o autor aborda a crise do Estado-nação, inserida no contexto da internacionalização do capitalismo, dos avanços tecnológicos e da criação de blocos econômicos e políticos, que acabaram por reduzir o poder dos Estados. 

A internacionalização do sistema capitalista, iniciada há séculos mas muito acelerada pelos avanços tecnológicos recentes, e a criação de blocos econômicos e políticos têm causado uma redução do poder dos Estados e uma mudança das identidades nacionais existentes” (CARVALHO, 2009, p. 13)
           
            Dessa forma, a redução do poder do Estado e o aumento da influência de blocos e organizações internacionais tem afetado profundamente a questão dos direitos políticos. Se o Estado tem seu poder de governo diminuído, diminui também o interesse do cidadão em participar desse governo. Consequentemente, a conquista de direitos políticos, da própria participação política, deixa de ser um ideal. O que passa a ocupar essa posição de “ideal a ser perseguido” é uma questão que tentaremos responder. 


3 THE FRAMING EFFECT


3.1 O CONDICIONAMENTO COMPORTAMENTAL A PARTIR DA CONSCIÊNCIA POLÍTICA

Aqui retomamos o papel da mídia nesse cenário. Diante do condicionamento econômico dos meios de comunicação de massa a que já nos referimos, há uma tendência ao preenchimento daquela posição de ideal, que se encontra vazia. Ainda fazendo referência ao importante trabalho de Carvalho, voltamos nossa atenção para o que o autor denomina “o novo câncer que impede a constituição de uma sociedade democrática” (CARVALHO, 2009, p. 229). O autor acredita que o Brasil, devido às peculiaridades de sua formação histórica e política, ainda não sofre, tão cronicamente quanto os países europeus, por exemplo, daquela condição de esvaziamento do poder de Estado-nação. Entretanto, Carvalho não aborda uma outra questão, bastante atual e profundamente central para a discussão a que nos propomos: a questão da corrupção.
A corrupção tomou proporções assustadoras no Brasil. Não será possível abordar, aqui, de forma específica essa mazela que adoece nosso país. No entanto, é importante ressaltar que a apresentação recorrente desse tema pela mídia tem criado no brasileiro um desprezo pela sua própria nação, pelos seus representantes e pelas instituições democráticas. A representação midiática do país condiciona a interpretação que o indivíduo constrói do seu país, de seus compatriotas e, finalmente de si mesmo.  Habermas (1965)[2], reconhece a influência da mídia. Em seu artigo “Comunicação, opinião pública e poder”, o autor afirma categoricamente que “os processos de comunicação sofrem a influência dos meios de comunicação de massa, seja de modo direito, seja em maior escala através dos ‘líderes de opinão’” (HABERMAS, 1965 in COHN, 1987, p. 197). Sobre a volatilidade da opinião pública o autor afirma que:

A dificuldade que se origina disso foi observada por Landshut. Ele registra por um lado o fato de que “o lugar da opinião pública é ocupado por uma tendência indefinida e dependente de estados de espírito momentâneos. Ela é orientada nessa ou naquela direção conforme medidas e ocorrências determinadas...” (HABERMAS, 1965)[3](grifo nosso).

O desinteresse pela busca de direitos civis e políticos e o estímulo ao consumo cegam os olhos da sociedade para um problema ainda maior: a desigualdade social. Segundo Carvalho, a cultura do consumo ameaça o avanço democrático ao criar na sociedade uma valorização maior do direito ao consumo, do que dos direitos políticos. Segundo Carvalho, essa cultura dificulta a busca pela solução do problema da cidadania, impedindo que o sistema democrático resolva o grande problema da desigualdade que para o autor é a nova escravidão.
Percebe-se que há uma transferência do foco das questões políticas e sociais, para o estímulo ao consumo. Como apontamos incialmente, as representações têm a capacidade de produzir imagens mentais que passam a representar, na consciência do indivíduo, a própria realidade, condicionando seu discurso, seu sistema de valores e, como veremos agora, seu próprio comportamento. Martino (2013 apud QUEIROZ, 2015) aborda essa capacidade de condicionamento do discurso midiático e apresenta o conceito de framing effect.

A maneira conforme as informações são apresentadas pode influenciar diretamente o modo como as pessoas entendem essa informação. A mídia influi diretamente no modo de interpretação das pessoas construindo a mensagem, de modo a deixar margem para uma única maneira de interpretá-la. (MARTINO, 2013, p. 46, apud QUEIROZ, 2015, p. 5).

            A apresentação sistemática e recorrente de uma mesma mensagem acaba por influenciar de forma decisiva o comportamento dos indivíduos, que passam a adotar ideias, valores e ideais externos, fabricados e manufaturados com motivações bastante específicas: a orientação do comportamento social para o consumo e o desprezo pelos direitos políticos, pela identidade nacional e pelo próprio crescimento pessoal. Como vimos anteriormente, o direito ao consumo passa a substituir o ideal de participação política, o reconhecimento de si enquanto cidadão capaz, sujeito de direitos civis, políticos e sociais. Consequentemente, há a fragmentação da personalidade do indivíduo, que deixa de compor um todo coerente e se torna uma peça de encaixe, sem individualidade, sem identidade e sem poder de ação. O poder de ação é substituído pela ilusão do consumo. Veremos, a seguir, que essa lógica tem um caminho bastante definido: o caminho do enfraquecimento da comunidade nacional.


4 DECEPÇÃO E FRAGMENTAÇÃO: O ENFRAQUECIMENTO DA COMUNIDADE NACIONAL


            Diante das informações apresentadas, podemos afirmar, como McQuail, que “está claro que a mídia de massa contribui para o estabelecimento da percepção da identidade nacional” (McQUAIL, 2012, p. 273). Retomando alguns conceitos problematizados anteriormente, percebemos que a exposição acrítica ao discurso enviesado dos meios de comunicação de massa cria, na consciência dos indivíduos, uma visão distorcida da realidade. Essa visão distorcida alcança também a própria consciência de si e do seu lugar no mundo. Dessa forma, as representações sócio-culturais veiculadas pela mídia começam por afetar a construção da personalidade das pessoas que, ao agir sobre o mundo a partir da visão distorcida que desenvolveram, acabam por ampliar aquela influência da mídia para o âmbito social.
            Uma sociedade construída sobre relações entre personalidades fragmentadas se transforma, mais cedo ou mais tarde, em uma sociedade fragmentada. Retomando a questão da identidade nacional e relacionando tal questão ao desprezo e desinteresse pela capacidade participação e capacidade política, percebemos que há uma tendência ao enfraquecimento, ao apagamento dessa identidade. McQuail assim se refere ao conceito de identidade nacional:

Em geral, o termo refere-se à propriedade coletiva da sociedade que é amplamente reconhecida e pessoalmente importante para muitas pessoas. Seu principal elemento parece ser um senso de pertencer a uma coletividade em especial com atributos comuns (de lugar, idioma, cultura) e um senso de exclusividade. (McQuail, 2012, p. 273).

Quando há o desprezo pela nação e o desinteresse pela participação política, perde-se esse “senso de pertencer”. Quem deseja pertencer a algo que despreza? Quem desejaria ser participante de um sistema que abomina? O indivíduo é vilipendiado em seu direito de propriedade, mas de uma propriedade maior e mais fundamental: a propriedade coletiva da própria identidade nacional.
A questão é muito mais ampla do que os limites que o presente trabalho impõe. No entanto, a discussão apresentada condiciona a propositura de caminhos, de iniciativas que possam reverter o quadro geral. É necessário e urgente que busquemos caminhos para a reconstrução da identidade nacional e para a formação de uma sociedade que se reconheça sujeita de seu destino, capaz e influente.


CONCLUSÃO


            O presente artigo abordou a questão da influência da mídia na construção da identidade nacional. Apresentamos uma proposta de análise para os processos de condicionamento político e econômico e dos meios de comunicação de massa, a partir da construção de representações socioculturais enviesadas.
            Foi discutido o “problema da cidadania”, segundo a proposta de Carvalho (2009) e a substituição do ideal de participação política pelo ideal da cultura de consumo. Apresentamos uma compreensão das possíveis conseqüências geradas por esse processo de desprezo pela participação política.
Avançamos em direção às influencias comportamentais que as representações veiculadas pela mídia podem vir a produzir na sociedade, por meio do condicionamento comportamental gerado pela consciência política que se constrói a partir da exposição ao discurso midiático. Por fim, vinculamos a noção de fragmentação da personalidade individual à fragmentação da comunidade nacional, por meio do esvaziamento da identidade nacional.
Resta-nos propor, à guisa de conclusão, um caminho para a reconstrução desse “senso de pertencer”. Esse caminho é a educação popular. Não há como se reconhecer sujeito de direito sem o desenvolvimento da autoconsciência (self-awareness). Um indivíduo auto-consciente não se posiciona de forma passiva diante das informações que a ele chegam: ele pondera, ele investiga, ele critica. No entanto, só age dessa forma o cidadão que foi ensinado a agir assim. Segundo Carvalho, nos países em que a cidadania se desenvolveu mais rapidamente, foi a educação “que permitiu às pessoas tomarem conhecimento de seus direitos e se organizarem para lutar por eles” (CARVALHO, 2009, p. 11).
            Abrimos breves parênteses para esclarecer um aspecto a respeito da educação. Cabe salientar que não se advoga aqui em prol do socioconstrutivismo ou qualquer outra teoria da educação que se volta contra o ensino de conteúdos e defende a diminuição da figura do professor. Não é possível que o aluno aprenda sem orientação, não é possível criticar o que não se conhece. Dessa forma, não há benefícios em se limitar o acesso do estudante a conteúdos que precisa conhecer. O que se faz necessário é o ensino do raciocínio organizado, da ponderação, até mesmo da humildade acadêmica, para que em seguida esse estudante seja capaz de se posicionar, de formular opiniões críticas, de refletir a respeito da informação que a ele chega.
            Dentro das limitações aqui impostas, nos atemos a essa proposta. A educação é o caminho para a construção de uma sociedade verdadeiramente livre e cidadã. Um país que despreza a educação e que a relega a segundo ou terceiro plano é um país fadado à fragmentação e ao fracasso. Uma reforma política pode aliviar sintomas. No entanto, uma reforma educacional pode curar a doença, ainda que em longo prazo.

Por Lorena Brandizzi, 
Junho de 2017


BIBLIOGRAFIA



BERND, Z. Literatura e identidade nacional. Poa: Editora da UFRGS, 1992.

CARVALHO. Cidadania no Brasil O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

CASTRO, C. A. P. de. Sociologia do Direito. São Paulo: Editora Atlas S. A., 2009.

CHARAUDEAU, P. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006.

ESTEVES, J. P. Mídias e Processos Socioculturais. São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2000.

HABERMAS, J,. Comunicação, opinião pública e poder. In: COHN, G (org.). Comunicação e Indústria Cultural: leituras de análise dos meios de comunicação na sociedade contemporânea e das manifestações da opinião pública, propaganda e cultura de massa nessa sociedade. São Paulo: T. A. Queiroz, 1987. Capítulo 10. p. 187-200.

MARTIN, H.-P.; SCHUMANN, H. A armadilha da globalização. São Paulo: Globo, 1999.

McQUAIL, D. Atuação da mídia: comunicação de massa e interesse público. Porto Alegre: Penso, 2012.

QUEIROZ, M. A. M.; SILVA, N. R. Corrupção: a formação da identidade nacional a partir da atuação midiática. In: XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 38., 2015, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, 2015. Disponível em


[1] KELLNER, 1995, p. 257 apud ESTEVES, 2000, p. 25.
[2] In COHN, 1987.
[3] In COHN, 1987, p. 189.

Sistemas eleitorais



 https://fanut.ufg.br/up/128/o/Elei%C3%A7%C3%A3o.gif?1354742717 


Texto: NICOLAU, Jairo. “Cap.1 – Sistemas majoritários; Cap.2 – Sistemas proporcionais”. In: Sistemas eleitorais. 5ª Edição; Rio de Janeiro: FGV, 2004, pp. 17-61

No Capítulo 1, Nicolau aborda os sistemas eleitorais majoritários, entendidos como aqueles em que os candidatos mais votados são os únicos que alcançam representação. O autor aborda separadamente os sistemas de maioria simples, de dois turnos e de voto alternativo. No sistema de maioria simples, o candidato eleito é que o recebe mais votos que seus representantes. Esse sistema tem sido utilizado no Reino Unido desde 1264, quando surgiu o Parlamento. O território inglês divide-se em 659 distritos, sendo que cada partido pode apresentar apenas um candidato por distrito (sistema de maioria simples em distrito uninominal). Segundo Nicolau, as críticas a esse sistema apontam para distorções de representação. No entanto, seus defensores argumentam que ele permite que os eleitores tenham um maior grau de controle dos representantes eleitos.
Em seguida, Nicolau explica o funcionamento do sistema de dois turnos. Segundo o autor, quando ele é utilizado para a eleição de membros da Câmara dos Deputados, funciona de forma semelhante à do sistema de maioria simples, pois também há a divisão do país em distritos uninominais. Caso nenhum dos candidatos alcance mais de 50% dos votos, há um segundo turno em que os candidatos mais votados disputam novamente. Os defensores desse sistema afirmam que há “garantia de representação de comunidades no Parlamento e maior capacidade de controle da atividade do representante” (p. 25). Além disso haveria uma tendência à eleição de partidos mais moderados. No entanto, Nicolau argumenta que não há a garantia de que uma vitória por maioria absoluta garanta a obtenção de mais de 50% de representatividade por parte do partido seja alcançada nacionalmente.
Nicolau avança em sua explanação apresentando as características do sistema de voto alternativo, adotado na Austrália para a escolha dos membros da House of Representatives. Dentro desse sistema, não há a necessidade de uma nova eleição para que o candidato receba maioria absoluta dos votos, pois há a transferência de votos dos candidatos com menor número de votos. O autor afirma que esse sistema, apesar de eleger um candidato representativo, não evita “as distorções entre a votação e a representação dos partidos na Câmara dos Deputados” (NICOLAU, 2004, p. 29).
Segundo Nicolau, no que diz respeito à eleição de presidentes, o sistema majoritário é o mais utilizado, sendo que há países em que essa escolha é direta e países onde é indireta, como nos Estados Unidos, onde um colégio eleitoral, composto por 538 delegados, elege o novo presidente. Caso nenhum candidato obtenha maioria absoluta dos votos, o novo representante do Executivo será escolhido pela Câmara dos Deputados. O autor ainda apresenta exemplos de países onde o presidente é escolhido pelo sistema de maioria simples (México, Venezuela, Honduras, entre outros) e pelo sistema de dois turnos (Brasil, Áustria, Portugal, Rússia, entre outros). Nicolau finaliza o capítulo apontando para o fato de que o sistema eleitoral influencia o padrão de coalizão de partidos.
No segundo capítulo, relativo à representação proporcional, o autor apresenta suas duas modalidades: o voto único transferível e o sistema de lista. Segundo Nicolau, a representação proporcional busca “que assegurar a diversidade de opiniões de uma sociedade esteja refletida no Legislativo e garantir uma correspondência entre os votos recebidos pelos partidos e sua representação” (NICOLAU, 2004, p. 36). O voto único transferível tem em sua base o sistema proposto por Thomas Hare, que acreditava que as opiniões individuais deveriam ser representadas, mais do que a opinião de partidos ou comunidades. Para Nicolau, nesse sistema, “o eleitor tem controle sobre a natureza da transferência de seu voto [pois] (...) a transferência dos votos é feita exclusivamente para os nomes especificados pelo eleitor” (NICOLAU, 2004, p. 41).
No sistema de representação proporcional por lista, “cada partido (ou coligação) apresenta uma lista de candidatos; os votos de cada lista partidária são contados; as cadeiras são distribuídas entre os partidos proporcionalmente à votação obtida pelas listas; as cadeiras são ocupadas por alguns dos nomes que compõem a lista” (NICOLAU, 2004, p. 43). Apesar de parecer simples, Nicolau afirma que trata-se de um sistema complexo, afetado por cinco fatores: a fórmula eleitoral adotada para a distribuição de assentos; “a magnitude dos distritos e a existência de mais de um nível para alocação de cadeiras” (NICOLAU, 2004, p. 43); a cláusula de exclusão de partidos; a possibilidade da construção de coligações e as regras estabelecidas para a própria formação da lista (lista aberta ou fechada).
O autor finaliza apresentando as críticas à representação. A primeira critica a ênfase na ideia da representatividade em eleições e a indiferença quanto ao seu objetivo de formação dos governos. Esse sistema tende à produção de governos instáveis em que os partidos acabam por sofrer mutações quando entra em coalizões, deixando de representar o que seus eleitores acreditavam que ele representaria. A segunda critica a exigência de distritos plurinominais que reduziriam a ligação entre eleitores e representantes, prejudicando a possibilidade de o eleitor punir ou recompensar o representante eleito, com base em sua atividade política.

Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. (BARROSO, Luís Roberto.)



Texto: BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.

            Em seu artigo, Barroso aborda os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial no Brasil, apontando as diferenças entre eles e as consequências positivas e negativas que geram nos cenários político e jurídico nacionais. Segundo o autor, a judicialização ocorre quando “questões de larga repercussão política ou social estão sendo decididas por órgãos do Poder Judiciário, e não pelas instâncias políticas tradicionais: o Congresso Nacional e o Poder Executivo” (BARROSO, p. 3). Para o autor, esse fenômeno não é exclusividade do Brasil, mas algumas de suas causas seriam decorrentes de nossa organização institucional.
A primeira causa apontada por Barroso foi a redemocratização que levou à promulgação da Constituição Federal de 1988 e que tornou a Justiça brasileira, mais especificamente o Supremo Tribunal Federal, mais independente e politicamente ativo. Além disso, ela trouxe conscientização à população quanto à possibilidade de acesso à Justiça com vistas à proteção de seus direitos. A segunda causa da judicialização foi o que o autor denomina constitucionalização abrangente, fenômeno que tornou constitucionais questões que antes pertenciam ao âmbito legislativo e político. O autor explica que, quando uma questão é elevada ao nível constitucional, “ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial” (BARROSO, p. 4). A última causa apresentada pelo autor é “o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade” (BARROSO, p. 4), com sua possibilidade de controle difuso e incidental ou controle concreto, por ação direta do STF. Esse último aspecto tornou possível o tratamento pelo STF de praticamente qualquer questão de relevância política ou moral. O autor explica que a judicialização não se deve à vontade do Judicário: o STF não tem a opção de se manifestar ou não a respeito de uma ação, desde que ela preencha os requisitos legais de cabimento. Dessa forma, a judicialização é consequência do desenho institucional e não de uma postura voluntária do Judiciário.
            Barroso trata em seguida do segundo fenômeno citado anteriormente, o ativismo judicial, que seria, diferentemente da judicialização, decorrente de uma “escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance” (BARROSO, p. 6). A auto-contenção judicial apresenta-se como o fenômeno oposto ao ativismo, pois pressupõe três atitudes: o judiciário evita agir quando não há indicação expressa de cabimento de sua ação; utilização de “critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos” (p. 7); e abstenção em questões de políticas públicas. Segundo Barroso, tanto a judicialização quanto o ativismo judicial devem-se a uma crise extrema no Legislativo que tem instigado o Judiciário a avançar na busca da defesa da Constituição, uma vez que aquele poder tem se mostrado omisso em suas funções e ilegítimo no exercício da representatividade.
            Para o autor, os fenômenos apresentados têm uma face positiva e outra negativa. Do ponto de vista positivo, o Judiciário tem tratado de questões que aguardavam posicionamento legal há muito tempo, como por exemplo a greve no serviço público. No entanto, há um lado negativo, a saber, a exposição das mazelas do Legislativo. Barroso deixa bem clara a necessidade urgente de uma reforma política que viria a “fomentar autenticidade partidária, estimular vocações e reaproximar a classe política da sociedade civil” (BARROSO, p. 9).
O autor apresenta, em seguida, as críticas relativas à intervenção judicial excessiva na sociedade brasileira. Tais críticas se voltam à ameaça à legitimidade democrática, à politização da justiça e à limitação da capacidade institucional do Judiciário. Quanto à primeira crítica, o autor explica que há dois fundamentos que garantem a defesa da legitimidade democrática por meio da intervenção judicial: um fundamento normativo (previsão constitucional de atuação técnica e imparcial do Judiciário) e um fundamento filosófico (o Judiciário é responsável pela defesa do Estado constitucional democrático). Quanto à segunda crítica, a politização do Direito, o autor a rebate afirmando que apesar de não haver um limite claro separando política e Direito, “em uma cultura pós-positivista, o Direito se aproxima da Ética, tornando-se instrumento da legitimidade, da justiça e da realização da dignidade da pessoa humana” (BARROSO, p. 13). Quanto à última crítica, que se concentra na capacidade institucional limitada do Judiciário, o autor reconhece a necessidade de que esse Poder se avalie quanto aos limites de sua capacidade técnica de decisão e aos efeitos sistêmicos que podem advir de seus posicionamentos, se auto-limitando espontaneamente quando necessário.
Barroso conclui retomando resumidamente cada ponto abordado e apontando para o fato de que o ativismo judicial, até o momento, tem operado de forma benéfica, sendo parte da solução para questões que afligem o país há muito tempo. No entanto, segundo o autor, “ele é um antibiótico poderoso, cujo uso deve ser eventual e controlado” (BARROSO, p. 19). Para Barroso o problema real, carente de solução, é “a crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade do Poder legislativo” (BARROSO, p. 19).

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Legalidade e legitimidade do poder político

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Texto: BONAVIDES, Paulo. Legalidade e legitimidade do poder político. In: Ciência Política. 10ª edição. São Paulo: Malheiros, 2000.

            O objetivo central do capítulo analisado é abordar a relação entre legalidade e legitimidade. Segundo o autor, o conceito de legalidade supõe que “todo poder estatal deverá atuar sempre de conformidade com as regras jurídicas vigentes” (BONAVIDES, 2000, p. 140). Quando um regime ou governo funciona segundo critérios legais, suas instituições e atos de autoridade são livres na medida em que observarem rigorosamente o ordenamento jurídico vigente. Consequentemente, o poder legal é aquele que é exercido “em harmonia com os princípios jurídicos” (BONAVIDES, 2000, p. 141).
            Por outro lado, Bonavides afirma que a noção de legitimidade é mais complexa, uma vez que traz questionamentos relativos à motivação ideológica do poder legal. Dessa forma, um regime é legítimo quando o poder é exercido em “conformidade com as crenças, os valores e os princípios da ideologia dominante” (BONAVIDES, 2000, p. 141).
            O princípio da legalidade nasceu em resposta à exigência da sociedade por regras mais estáveis e fundamentadas na razão. Segundo Montesquieu, citado por Benevides (2000, p. 142), a legalidade seria “sinônimo de liberdade” ao trazer para os governados um sentimento de proteção geral contra a arbitrariedade dos governantes. A partir do século XVIII, os governos passaram a ter sua legitimidade vinculada à observância desse princípio.
            Para Bonavides, dentro da teoria política, a relação entre legalidade e legitimidade pode ser estudada segundo quatro pontos de vista: “o histórico, o filosófico, o sociológico e o jurídico” (BONAVIDES, 2000, p.143). Uma análise histórica demonstra que nem sempre houve uma consciência da distinção entre legalidade e legitimidade. No início do século XIX, essa distinção se tornou clara para os franceses quando vivenciaram o conflito entre “a legitimidade histórica de uma dinastia restaurada e a legalidade vigente do Código napoleônico” (p. 143). Com Luis Felipe, os dois conceitos se separam ainda mais e a legalidade se impõe sobre a legitimidade. A corrente racionalista traz a noção de que só é legítimo o poder que é, primeiramente, legal. No entanto, a legalidade estrita trouxe algumas consequências desastrosas como, por exemplo, a ascensão “legal” de Hitler.
            Do ponto de vista filosófico, “a legitimidade repousa no plano [...] dos critérios axiológicos” (BONAVIDES, 2000, p. 145) e é analisada por meio de proposições filosóficas que buscam os fundamentos para o exercício do poder. Há um esforço de análise do poder, não como é exercido, mas como deveria ser.
            A compreensão sociológica da legitimidade “implica sempre numa teoria dominante do poder” (p. 146). Segundo Duverger, citado por Bonavides, os governados sempre vão reconhecer como legítimo o governo vinculado à teoria dominante do poder, naquele tempo e local. A legitimidade é vista, assim, como uma noção “puramente relativa e contingente” (DUVERGER, 1970, p. 39, apud BONAVIDES, 2000, 147).Seguindo esse raciocínio, Weber “faz que a legalidade repouse sobre três formas básicas de manifestação da legitimidade: a carismática, a tradicional e a legal” (BONAVIDES, 2000, p. 148). O poder carismático funda-se sobre atributos pessoais do chefe e tem natureza autoritária e imperativa. O poder tradicional repousa sobre a presumida santidade do líder e sobre a noção de privilégio, tendo um caráter sólido e estável. Já o poder legal, de natureza formal e regulamentada, sustenta-se sobre a noção de competência, vinculada à observância do estatuto.
            Benevides aborda o ponto de vista jurídico e apresenta a posição do jurista alemão Carl Schmitt, que “intenta demonstrar que a posse do poder legal em termos de legitimidade requer sempre uma presunção de juridicidade, de exequibilidade e obediência condicional e de preenchimento de cláusulas gerais” (BONAVIDES, 2000, p. 150). A essas exigências o autor acrescenta a necessidade da teoria constitucional e da filosofia do direito.
            Por fim o autor aborda o problema da finalidade do poder político, do fundamento para o exercício do poder e o problema de se determinar “se todo governo é legal e legítimo ao mesmo tempo (BONAVIDES, 2000, p. 152) e como se configura a dissociação dessas duas características dentro de um governo. O autor deu dois exemplos: o do governo de Petain, um governo legal e que se tornou ilegítimo quando abandonou os interesses do povo; e o do governo do general De Gaulle, um governo ilegal, mas legítimo. Em casos como esse último, de governos que emergem de revoluções, o autor afirma que “a legitimidade fundará então com o tempo a nova legalidade” (BONAVIDES, 2000, p. 152).
            Bonavides termina o capítulo apontando para o fato de que o tema proposto é pouco discutido pela literatura jurídica. Ele apresenta alguns autores que abordam a questão com mais profundidade. Ele adverte, enfim, que a importância dos questionamentos levantados se mostra justamente “nas horas de crise do poder” (BONAVIDES, 2000, p. 153).

Sistema Político Brasileiro

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Texto: CINTRA, Antônio Octávio. “O sistema de governo no Brasil”, em AVELAR, L.; CINTRA, A. O. (orgs.). Sistema Político Brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung; São Paulo: Fundação Unesp Ed, 2007, pp.59-79.
           
            Cintra aborda a questão da opção pelo sistema de governo presidencialista no Brasil de um ponto de vista histórico e analítico. Segundo o autor, o Brasil estava a caminho de se tornar uma monarquia parlamentarista quando ocorreu a proclamação da República. No entanto, a baixa participação política, o caráter oligárquico do sistema político de então e a “identificação entre parlamentarismo e monarquia” (CINTRA, 2007, p. 60) teriam sido alguns dos obstáculos para o sucesso de um possível sistema parlamentarista. Apesar disso, Cintra afirma que havia a presença de traços de competição política e “contestação pública”, ainda que insuficientes para a caracterização de um regime democrático.
            O autor avança apresentando dados históricos referentes às tentativas de implantação do Parlamentarismo no Brasil. Segundo Cintra, a preocupação com a formação de um governo presidencial forte e centralizado impedia que tal implantação ocorresse. No entanto, afirma que apesar desse aspecto centralizador, a República apresentava traços consociativos tais como: “o federalismo, o bicameralismo, o mandato presidencial de quatro anos (...), a representação proporcional (...), o multipartidarismo e as ‘grandes coalizões’” (CINTRA, 2007, p. 60). Esse sistema de compartilhamento de poder permitiu que o parlamentarismo permanecesse uma possibilidade. Com a renúncia de Jânio Quadros, o Ato Adicional institui o parlamentarismo em 1961, diminuindo o poder presidencial de João Goulart, eleito vice-presidente. A partir daí o parlamentarismo adquiriu um “estigma golpista” (CINTRA, 2007, p. 61), sendo rejeitado pela população no plebiscito de 1963. O Regime Militar de 1964 impossibilitava qualquer ideia de compartilhamento de poder. Com a redemocratização e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte houve uma nova tentativa, mas a proposta foi engavetada pelo então presidente Sarney, sendo adotado pela Assembleia Nacional  Constituinte o sistema presidencialista, com a realização de um plebiscito em 1993 para que a população opinasse a respeito do assunto. Para Cintra essa decisão “foi altamente questionável” (CINTRA, 2007, p. 63), dada a complexidade do assunto.
            Quanto às razões para a rejeição do sistema parlamentar, para o autor, acredita-se que a missão de desenvolver o país deve ser entregue a um líder carismático, cujo poder é concentrado e advindo da legitimação do voto popular. No entanto, no Brasil, esse líder “esbarraria no sistema político cheio de pontos de bloqueio à tomada de decisões e, sobretudo, à implementação delas” (CINTRA, 2007, p. 64). Esse sistema está baseado em elementos que acabariam por minar o poder da maioria, tais como congresso pluripartidário, legislativo bicameral, federalismo real, Judiciário descentralizado e Ministério Público autônomo.
            O autor passa à análise do sistema presidencial brasileiro. Citando Abranches (1988 apud CINTRA, 2007, p. 65), o autor aponta para as “bases de nossa tradição republicana”, quais sejam, o presidencialismo, o federalismo, o bicameralismo, o multipartidarismo e a representação proporcional.  Segundo aquele mesmo autor, a estabilidade da nossa democracia tem sido ameaçada por um constate conflito entre Executivo e Legislativo, em cuja base estaria a “fragmentação na composição das forças políticas” (ABRANCHES, 1988, p. 8, apud CINTRA, 2007, p. 65). A tentativa de solução para essa problemática veio por meio do “presidencialismo de coalizão”, caracterizado por meio de alianças partidárias. Segundo Abranches, esse sistema seria instável por depender de uma harmonização sutil de interesses, ideologias e programas. Em nota, Cintra cita Abranches que afirma que essa política no Brasil “induz ao clientelismo e à patronagem”, apesar de ser “uma necessidade intrínseca de nosso sistema” (ABRANCHES, 2005, p. 44, apud CINTRA, 2007, p. 66).
            Cintra apresenta a síntese de Rennó a respeito das abordagens negativas do presidencialismo brasileiro. Num primeiro grupo estariam aqueles que criticam a capacidade governativa desse sistema. No segundo grupo, os que o vêem como um sistema que se move por meio basicamente da trocas de recursos. No terceiro grupo, que inclui o próprio Rennó, estariam aqueles que criticam a natureza relação entre Executivo e Legislativo. Segundo esses críticos, a forma como esse sistema foi desenhado não postula padrões claros de comportamento, oferecendo, de forma contraditória, incentivos “que ampliam em demasia a margem de manobra de governantes e dão muito espaço para que a capacidade individual dos governantes tenha papel central no gerenciamento da base de apoio no Congresso e na formação de maiorias” (PEREIRA, POWER, RENNÓ, 2005, apud CINTRA, 2007, p. 71). Para Rennó, o presidencialismo de coalizão não seria um projeto original e estável, mas uma tentativa de solução instável e temporária para essa conjuntura política caracterizada pelo multipartidarismo e pelo consociativismo do sistema como um todo.
            Cintra finaliza o capítulo apresentando uma análise do presidencialismo estadual e municipal. Segundo alguns dos autores apresentados por ele, no nível estadual haveria um ultrapresidencialismo caracterizado pela sobreposição dos governadores sobre as assembleias legislativas e os órgãos fiscalizadores. No entanto, Cintra cita os estudos de Fabiano Santos, sobre o Rio de Janeiro, que não confirmam a hipótese anterior, apresentando um Legislativo autônomo em relação ao Executivo estadual.

A norma culta e o português jurídico

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