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sexta-feira, 24 de março de 2023

A norma culta e o português jurídico


 

Por que os textos oficiais devem obedecer às regras gramaticais da língua portuguesa?

Uma análise do inciso V do art. 5º da Portaria Conjunta 91 de 01/09/21 do TJDFT.

 

Por Lorena Brandizzi

 

 

O primeiro passo para a produção de qualquer texto é a definição clara de seu destinatário. O texto deve ser escrito de forma que a pessoa que vá lê-lo “consiga” lê-lo. Não é uma atitude coerente escrever um texto deliberadamente obscuro e incompreensível para o leitor, seja qual for a justificativa que se utilize para isso (rebuscamento, estética, erudição ou tecnicismo).

Precisamos levar em consideração que a linguagem utilizada em textos jurídicos é uma linguagem técnica. Isso, no entanto, não impede que ela seja uma linguagem clara, coesa, objetiva e coerente. A necessidade de clareza, por sua vez, não é um empecilho para a correção gramatical.

                Quando tratamos da comunicação no contexto do serviço público, a correção gramatical não é um fim em si mesma. A linguagem deve ser abordada como uma ferramenta para o alcance dos objetivos da Justiça. Por essa razão, não se sustenta mais o argumento de que a linguagem jurídica deva ser mais “elevada”, rebuscada, diferente da linguagem comum. Na verdade, as expressões “linguagem jurídica” e “português jurídico” nem deveriam existir, pois a Justiça não deveria ter um “dialeto” próprio.

É inegável que seja necessária a utilização de termos técnicos, como ocorre na maioria das áreas do conhecimento. No entanto, isso não significa que seja coerente alterar o próprio formato da língua, empregando-se, por exemplo, uma ordem sintática invertida, totalmente antinatural, ou um vocabulário quase predominantemente desconhecido pela sociedade contemporânea. Dessa forma, a confusão entre linguagem técnica e linguagem rebuscada é algo que deve ficar definitivamente no passado para que o Judiciário alcance a excelência também na comunicação com o público externo.

De forma semelhante, há um equívoco quando mencionamos a necessidade de adoção da norma culta na redação de textos oficiais. A expressão norma culta é erroneamente associada a uma linguagem pomposa, academicista, de difícil compreensão para o cidadão comum. É preciso superar essa ideia equivocada.

A norma culta, variação linguística encontrada com mais frequência nos grandes centros urbanos do país, apresenta duas características principais: a observância das regras gramaticais e o emprego de um vocabulário que seja compartilhado pela maior parte dos falantes da língua. É interessante observar que não há referência a um vocabulário rebuscado ou sofisticado, mas a um vocabulário “comum” à comunidade linguística brasileira como um todo. Mesmo que uma pessoa não seja capaz de explicar uma determinada regra gramatical ou classificar os termos de uma oração, essa pessoa será capaz de compreender uma oração corretamente construída do ponto de vista gramatical se o vocabulário utilizado for do seu conhecimento.

Na verdade, desvios gramaticais podem gerar problemas de interpretação, prejudicando a comunicação. A correta transmissão de uma mensagem pode ser irremediavelmente prejudicada por solecismos[1] (erros de sintaxe), arcaísmos (uso de termos obsoletos, praticamente fora de uso), problemas ortográficos, ausência de paralelismo sintático e semântico, cruzamentos (presença de contaminação entre duas estruturas semelhantes gerando problemas sintáticos) entre outros desvios da norma culta.

O rebuscamento, quando levado ao extremo, pode soar ridículo e até mesmo levar o escritor a cometer erros gramaticais. Ao tentar impor ao texto sua “marca pessoal”, o escritor pode acabar se perdendo em meio às inversões sintáticas ou cometer um erro de regência verbal, por não ter conhecimento suficiente a respeito de um verbo obsoleto. Veja o exemplo de cruzamento sintático a seguir:

“A manifestação do parquet corrobora com a escorreita aplicação da lei determinada pelo excelso Tribunal em seu decisorium litis.”

Talvez por estar profundamente concentrado em adotar um vocabulário complexo e rebuscado, o escritor tenha se esquecido da regência correta do verbo corroborar, um verbo transitivo direto. Teria sido muito mais simples (e eficientes) escrever “a manifestação do Ministério Público corrobora a correta aplicação da lei determinada pelo Tribunal no acórdão”. Ainda há a opção de substituir o verbo “corroborar” por “confirmar” ou “comprovar”, a depender da intenção que o autor quer passar com o seu texto.

Como ensina Antonio Gidi, esse esforço por se fazer “presente” em um texto oficial é totalmente inadequado:

“A invisibilidade do estilo é particularmente importante na linguagem científica, técnica e profissional, que deve ser simples, direta, concisa, eficiente e convincente. O objetivo é que o estilo seja imperceptível, focando a atenção do leitor apenas no conteúdo. Quando o estilo desaparece, ressalta-se a mensagem”. (GIDI, 2022, p. 47)

Essa invisibilidade é ainda mais desejável quando levamos em consideração dois dos princípios orientadores da administração pública: a impessoalidade e a formalidade.

Além da necessidade interna de imprimir um estilo pessoal ao texto, outra justificativa muitas vezes usada para o rebuscamento é a reserva de mercado: alguns profissionais acreditam que precisam escrever daquela forma para parecerem competentes, inteligentes ou bem-sucedidos. Esse é um grande equívoco e precisa ser superado o quanto antes.

Escrever mal, com rebuscamento artificial e com expressões antiquadas e desconhecidas, pode prejudicar a transmissão da mensagem. O conteúdo e a habilidade de argumentação do escritor podem ser completamente ofuscados por esses vícios. Vejam que tragédia: o profissional tem o conhecimento necessário, mas, ao tentar escrever de forma pomposa, passa justamente a impressão de não possuir conhecimento algum.

                Quanto à justificativa relacionada à necessidade de uma “linguagem técnica”, como explicado anteriormente, o campo profissional em que o Judiciário se insere exige o uso de alguns termos específicos e, em alguns casos, a adoção de estruturas textuais próprias. Há uma série de termos e expressões característicos da linguagem jurídica cujo uso se faz necessário para a correta delimitação de conceitos específicos dessa área. Esse vocabulário técnico desempenha uma função importante para a própria clareza do texto. Vejamos o exemplo de um acórdão da Terceira Turma Cível do TJDFT:

"1. Os créditos tributários relativos a impostos, cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis, têm natureza jurídica propter rem e, por isso, sub-rogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes, nos termos do art. 130 do Código Tributário Nacional. 2. A sub-rogação verificada na aquisição de bens é pessoal, há mudança do sujeito passivo da obrigação, porquanto o adquirente passa a ser o responsável por todo o crédito tributário do imóvel. 3. Em que pese a possibilidade de a vendedora diligenciar junto à Secretaria de Fazenda do Distrito Federal para transferência da responsabilidade pelo pagamento de tributos lançados sobre imóvel cuja propriedade cartorária já foi transferida ao comprador, tal situação não cria responsabilidade concorrente para tanto, em especial diante da previsão do artigo 130 do Código Tributário Nacional. 4. O excesso de tempo em que o nome permanece inscrito na dívida ativa do Distrito Federal causa considerável sofrimento, que ultrapassa o mero dissabor e abalos à imagem e à credibilidade, os quais devem ser indenizáveis."[2]

Acórdão 1274329, 07301828920198070001, Relator: MARIA DE LOURDES ABREU, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 12/8/2020, publicado no DJE: 26/8/202.

 

                As expressões “fato gerador”, “domínio útil”, “natureza jurídica propter rem” e “sub-rogar” são necessárias para a correta comunicação da decisão. O leitor comum pode ter dificuldade para compreender esses termos, mas o seu uso não pode ser afastado sem certo risco para a segurança jurídica. No entanto, podemos observar que, no ponto dois, a Relatora do Acórdão explica o significado da expressão sub-rogação.  Essa explicação, mesmo que não tenha sido explícita, esclarece um pouco o conceito de obrigação propter rem, citado anteriormente.

Percebemos assim, que termos técnicos, quando adequadamente utilizados, impedem falhas na comunicação que podem gerar problemas graves no mundo jurídico. Há, no entanto, um limite para a tecnicidade do vocabulário jurídico. Se há opções mais simples e conhecidas que não comprometem a clareza do texto, do ponto de vista jurídico, nada justifica o uso de termos obscuros, antiquados e enigmáticos que, em lugar de explicar, acabam por complicar.

A utilização da norma culta da língua portuguesa não é uma determinação isolada: ela se insere dentro da busca por uma comunicação mais clara e mais transparente, que contribua para a aproximação entre a Justiça e a sociedade. Esse é um dos desafios delineados pelo Conselho Nacional de Justiça na Resolução 325, de 29 de junho de 2020. A Resolução dispõe sobre a Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026 e propõe como um dos macrodesafios do Poder Judiciário a adoção de uma linguagem mais simples pelos órgãos da Justiça:

FORTALECIMENTO DA RELAÇÃO INSTITUCIONAL DO PODER JUDICIÁRIO COM A SOCIEDADE Descrição: Refere-se à adoção de estratégias de comunicação e de procedimentos objetivos, ágeis e em linguagem de fácil compreensão, visando à transparência e ao fortalecimento do Poder Judiciário como instituição garantidora dos direitos. Abrange a atuação interinstitucional integrada e sistêmica, com iniciativas pela solução de problemas públicos que envolvam instituições do Estado e da sociedade civil. (Resolução 325, de 29 de junho de 2020, p. 11). (grifo nosso)

Conclui-se, assim, que a Portaria Conjunta 91 do TJDFT, ao determinar a obediência às regras gramaticais da língua portuguesa na criação e revisão de documentos e materiais informativos (art. 5º, V), visa à adoção de uma linguagem simples, que possa ser compreendida pela sociedade como um todo, de forma que o jurisdicionado possa ter acesso pleno à Justiça. Não é mais aceitável que a linguagem jurídica se mostre inacessível ao seu principal destinatário. Por essa razão, os agentes públicos devem buscar aprimorar a sua redação de forma que reflita um uso correto (do ponto de vista da norma culta), claro e eficiente da língua portuguesa, de acordo com o padrão técnico-jurídico, mas apto a tornar mais próxima a relação entre a sociedade e o Judiciário.

 

Referências:

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 325, de 29 de junho de 2020. Dispõe sobre a Estratégia Nacional do Poder Judiciário 2021-2026 e dá outras providências. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3365. DJe/CNJ nº 201, de 30/06/2020, p. 2-10. Acesso em: 24 out. 2022.

BRASIL.Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Portaria conjunta 91 de 1º de setembro de 2021. Regulamenta o uso de linguagem simples e de direito visual no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios - TJDFT. DJe nº 168, de 3/09/2021, fls. 25-27. Acesso em: 24 out 2022.

GIDI, Antônio. Redação jurídica: Estilo profissional. Forma, estrutura, coesão e voz. São Paulo: Editora Juspodivm, 2022.

PAIVA, Marcelo. Português jurídico. 10. ed. Brasília: Educere, 2015.



[1] “É o erro de sintaxe (que abrange a concordância, a regência, a colocação e a má estruturação dos termos da oração) que a torna incompreensível ou imprecisa, ou a inadequação de se levar para uma variedade da língua a norma de outra variedade; em geral, da norma coloquial ou popular para a norma exemplar: Eu lhe abracei (por o).” (BECHARA, 2019, p. 632).

quarta-feira, 17 de março de 2021

Planner para o estudo de Português

 


 

Você sente que seu estudo de português não avança, que está sempre voltando à estaca zero e que não consegue reter nada?

Quando não temos ideia do todo, nos perdemos a cada novo recomeço e desanimamos por não saber se estamos evoluindo.

Por isso, é fundamental ter uma ideia geral da matéria e traçar um plano de ação.

Para isso, eu preparei um planner com os conteúdos mais importantes de português, organizados por categoria em uma tabela interativa. Você pode estudar tudo na ordem em que aparece ou escolher as partes que mais te trazem dificuldades.

O planner foi organizado com base na gramática do Prof. Ernani Terra, mas você pode procurar o tema no seu material ou na internet e fazer o seu estudo como achar melhor.

No arquivo do Excel, é possível ir acompanhando o avanço no conteúdo, incluindo a data das revisões, o número de questões resolvidas e acertadas. A própria tabela faz o cálculo automático do índice de acertos.

Os temas em amarelo são aqueles que, segundo a minha experiência, são os mais cobrados. No entanto, para quem vai começar do zero e tem muitas dificuldades com português, eu recomendo estudar tudo, começando pela Morfologia.

O arquivo em pdf é mais adequado para quem gosta de imprimir (como eu).

O melhor: é um material GRATUITO. Basta entrar no link e baixar! Se gostar, compartilhe nos seus stories e me marque 😉🙌

Bons estudos! 

Clique para baixar o seu planner para o estudo do Português

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Plurilinguismo




A Língua Portuguesa deixou de ser propriedade de Portugal já faz algum tempo. Devido às relações comerciais e políticas que Portugal mantinha com países da América, África e até do Oriente, nossa língua passou a ser falada em vários lugares do mundo. No entanto, apesar de no Brasil estarmos acostumados a ouvir, e também a falar, apenas uma língua, nos parece extremamente estranha a situação de falantes de Língua Portuguesa em Cabo Verde e em Guiné Bissau, por exemplo.

Em tais países, a Língua Portuguesa é a língua escrita em qualquer situação. A Língua da escola. O crioulo por sua vez é a língua do convívio, a língua que se fala entre os amigos na escola, entre os familiares em casa, ou seja, nas relações informais. Em Cabo Verde, por exemplo, apesar de o Português ser quase que uma língua de prestígio, os falantes reconhecem que só podem expressar sua identidade cultural por meio da língua materna.

Em Guiné-Bissau, a Língua Portuguesa foi instituída como língua oficial antes mesmo da independência do país que se deu em 1976. No entanto, mais de 10 línguas eram faladas em tal país, e muitas delas caracterizam determinadas etnias. Também em Guiné-Bissau o Português foi instituído como língua de ensino e o crioulo permaneceu como língua de comunicação informal. Na administração, tanto português quanto crioulo são usados. Alunos de Guiné-Bissau relataram, em sala de aula, que para a maioria deles é normal estudar Português na escola, falar crioulo como os amigos e em casa conversar em língua materna com os pais. Eles explicaram que muitos pais sentem-se no dever de ensinar seus filhos suas línguas maternas (mesmo que sejam duas, uma do pai e uma da mãe) para que tais línguas não sejam extintas.

Essa situação de plurilinguismo pode ser encontrada em muitos outros países falantes de Língua Portuguesa. Em Moçambique, por exemplo, o Português é a língua falada pela elite escolarizada, mas há crianças que já o têm como Língua Materna. Em Angola o que se percebe é que é grande a diversidade étnica e cultural. A maior parte da população tem como língua materna uma língua local. O Português é tratado e ensinado como segunda língua e são muitas as diferenças estruturais e lexicais entre o Português de lá e o brasileiro. Ainda podemos citar Timor Leste e Luanda como países onde se pode perceber um plurilinguismo latente. Em Luanda, no entanto, o uso de línguas locais é minoritário.

Formação da Língua Portuguesa

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A História da Língua Portuguesa remonta ao século III a.C.. O processo de romanização da Península Ibérica foi o marco inicial do desenvolvimento do Português. O Latim se difundia à medida que os romanos avançavam Península a dentro. Os diferentes substratos tiveram sua parcela de contribuição para as peculiaridades de cada uma das línguas que foram se desenhando na Península e posteriores invasões trouxeram consigo os superstratos que, mesmo que de forma mais branda, também influenciaram na formação das Línguas. Quanto ao Português, costuma-se dividir sua História em cinco fases.

À fase do Português pré-literário corresponde um período de tempo em que a língua falada se distinguia muito da língua escrita. Enquanto a língua utilizada para registros escritos era o Latim, a língua que se falava era o romance. A partir do século XII, tem início o período do Português Antigo, cujo marco inicial são os primeiros textos escritos em Português. Esse período, que se estenderá até o século XV, caracteriza-se por uma fase comum ao Galego e ao Português. Este foi um período, caracterizado pela dificuldade, já anunciada na fase do Português pré-literário, que se enfrentava em registrar uma língua, já bastante elaborada, por meio dos recursos limitados do Latim. Parece importante salientar, mesmo que rapidamente, alguns pontos interessantes em relação aos sistemas vocálico e consonantal do Português Arcaico (entendido este como o português dos séculos XIII e XIV), pois muitas das mudanças que se deram em nossa língua têm origem em processos de supressão, adição, substituição e transformação de vogais, consoantes, encontros vocálicos entre outros.

O Português da fase arcaica surpreende devido à abundância de seqüências hiáticas que surgiram devido ao apagamento das oclusivas sonoras e do N e L intervocálicos. Exemplos dessas seqüências são: VIDI > vi-i > vi; SOLO > so-o > só; MANU > mã-o > mão [ãw]. Em vi e em só, à síncope da oclusiva e do L intervocálico, sucedeu-se a contração das duas vogais. Em teia o que se observa é a inserção de uma semivogal TELA > tea > teia. Em mão, o hiato foi resolvido pela ditongação. Aqui ocorreu o alargamento do elenco vocálico do Português pela aquisição de ditongos nasais.

Quanto ao sistema consonântico, uma das diferenças do Português Antigo em relação ao atual é a existência de fonemas africados. A semivogal palatal /j/ que surgiu como uma das soluções para alguns hiatos latinos, palatalizou algumas consoantes, que evoluíram para novas consoantes. A oclusiva dental /t/ ou vela /k/ antes de /j/ resultou na africada palatal /t /. No Português essa africada despalatalizou: TERTIU > ter[tj]o > ter[tsj]o > ter[t ]o > ter[ts]o > terço. A velar /k/ junto à vogal palatal resultou na africada dental: CENTO > [ts]ento > cento. Em contextos intervocálicos essas africadas podiam sonorizar: PRETIARE > pre[ts]ar > pre[dz]ar > prezar. O sistema do Português arcaico passou a apresentar quatro elementos distintos: duas africadas predorsodentais [ts] e [dz] e duas fricativas apicoalveolares [s] e [z]. No ramo palatal se distinguiram também quatro elementos resultantes de processos de palatalização e dos grupos latinos iniciais PL, CL e FL: PLANO>[t ]ão, chão; PASSIONE > pai[ ]õ, paixão; GENTE > [d ]ente, gente; BASIU > bei[ ]o, beijo. A africada palatal sonora simplificou e convergiu com a fricativa / / na fase inicial do Português Arcaico, mas a africada palatal surda ainda se conserva no dialeto setentrional do Português. Na grafia tem-se para /t / e / /, respectivamente,
e . Esclarecidos esses fatores passemos à Fase de grandes transformações históricas.

Galego e Português começam a diferenciar-se a partir do século XIV quando o Português, acompanhando o processo de expansão territorial de Portugal, passa por um movimento de elaboração e estandardização e fixa-se como língua nacional. À próxima fase do desenvolvimento da língua portuguesa corresponde um período repleto de transformações sócio-históricas e lingüísticas, um período que assiste à derrota da aristocracia rural do norte de Portugal pela burguesia em ascensão, na assim conhecida Batalha de Aljubarrota. A partir desse momento o centro político de Portugal desloca-se para o sul. Esse período, conhecido como Português Médio (ou pré-clássico), vai do século XV ao século XVI e apresenta um Português cada vez mais elaborado e que caminha para uma padronização com base literária, e para uma diferenciação ainda maior em relação ao Galego.

O período seguinte é marcado por uma reflexão metalingüística sistemática ou seja, por um esforço pela normatização. O Português Clássico tem início com a impressão da Grammatica da Lingoagem de Fernão de Oliveira em 1536 e se estende até o século XVIII. As mudanças pelas quais o Português passa nesse período são resultado de um conjunto de fatores que, embora diversos, colaboraram em conjunto para o rascunho de uma atitude científica em relação à língua: o Renascimento e os Descobrimentos são alguns desses fatores. O padrão lingüístico é estabelecido por meio do ensino, da disciplina gramatical, da literatura e da imprensa.

Ao Português Moderno corresponde o período do século XVIII até os dias atuais. Ao que parece, a língua não passou por mudanças extremas nesse período. A tecnologia e o ensino têm sido

responsáveis pela difusão da língua. O Português deixou de ser “propriedade” de Portugal e passou a ser instrumento de comunicação em diversos lugares com os quais Portugal mantinha relações comerciais e/ou políticas (principalmente de relações de domínio), sendo falado na América, na África e no Oriente. Alguns autores afirmam que é possível a compreensão entre europeus, africanos e americanos, no entanto, as diferenças dialetais são imensas e parecem influenciar sobremaneira a comunicação entre essas comunidades.

Conscientes da importância da união entre países que compartilham uma mesma língua, Portugal, Brasil e alguns países da África assinaram, em 1996, a declaração constitutiva da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), cuja maior atribuição consiste em administrar questões relativas a políticas de idioma, de língua, lingüísticas e de ação educacional, todas voltadas para a preservação das línguas locais, onde seja o caso, e para a difusão da Língua Portuguesa.
OBS.: As inscrições dos símbolos fonéticos ainda não estão completas.

Fonte:
CARDEIRA, Esperança,
"O Essencial sobre a História do Português". Editorial Caminho, 2006.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Resenha "Redação na Escola" (Eglê Pontes Franchi)

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FRANCHI, Eglê Pontes, A Redação na escola: e as crianças eram difíceis. 2 Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 243 p. il.

Redação na Escola foi originalmente escrito sob a forma de dissertação de Mestrado na área de Metodologia do Ensino. O trabalho de pesquisa e prática da professora Eglê Franchi foi desenvolvido na E.E.P.G. Agrícola Dr. Antônio Carlos de Couto Barros, na Vila Santana, no distrito de Sousas, a 9km de Campinas, São Paulo. As crianças que frequentavam a escola eram, em sua maioria, moradoras do Conjunto Habitacional de Vila Santana, pertencentes ao estrato inferior no que diz respeito à situação econômica das famílias. Eglê Franchi, durante quatro meses, dispôs-se a documentar e avaliar seu dia-a-dia de trabalho à frente de uma turma da terceira série do primeiro grau, composta inicialmente por vinte alunos, dos quais três foram transferidos para outras escolas. Um desses dezessete alunos, segundo Eglê, não obteve sucesso algum durante os quatro meses de trabalho. Tal aluno, apesar de capaz de ler e interagir socialmente, não conseguia escrever. A professora evitou definir o seu caso como patológico e afirmou que a ausência de um psicólogo na escola e de um programa de assistência a crianças com dificuldades de aprendizagem tornou ainda mais difícil o seu trabalho junto àquela criança. Dos dezesseis alunos restantes, a autora afirmou que onze já haviam sido reprovados anteriormente. Essa turma que lhe foi designada continha aqueles alunos rejeitados pelos professores (seis educadores já haviam passado por essa classe) como incapazes, alunos-problema, burros ou mesmo como deficientes mentais. Toda essa estigmatização deu origem a um grupo de alunos que se desvalorizavam, que aceitavam para si aquela imagem de fracos e indisciplinados. Esse sentimento de autodesvalorização, segundo a autora, estava na base do comportamento agressivo que eles demonstravam constantemente.

Na Introdução ao seu livro, Eglê discorre a respeito das conseqüências desastrosas dessa atitude segregacional do sistema educacional que, oferecendo à criança socialmente desvalorizada um conhecimento totalmente desconectado de sua realidade, estigmatizando suas origens e sua língua, pressionando-a constantemente por meio de notas, acaba por negar-lhe o acesso ao saber, o saber que poderia libertá-la da opressão do sistema capitalista, dando-lhe condições de ascensão social e humana.

No primeiro capítulo do livro a autora apresenta sua proposta: empreender um trabalho de reflexão teórica e metodológica que não se afastasse da situação real de sala de aula, com o objetivo de analisar os problemas causados pela imposição da norma culta às crianças em início de escolarização e como essa imposição afeta a criatividade dessas crianças. A autora descreve seu primeiro contato com aquela turma como desagradável, pois a uma tentativa de apresentação se seguiu uma discussão repleta de xingamentos. Entretanto, a professora optou por não repreendê-los, mas aproveitou a situação para explorar-lhes a rivalidade, tirando daí uma primeira lição: a de que sua intervenção em momentos de crise deveria sempre buscar alterar e reorientar o processo, de forma positiva e ativa, e não por meio da repreensão, sempre negativa.

As atividades propostas por Eglê tinham sempre alguma conexão com a realidade das crianças e sempre provinham de uma sondagem de interesses. De um questionário sobre suas expectativas a respeito da escrita surgiu a primeira proposta de trabalho: a redação de estorinhas. Antes de solicitar-lhes a execução desse trabalho, a professora realizou uma atividade improvisada com gestos e mímicas, o que, dada a ludicidade e espontaneidade da atividade, lhe proporcionou o ambiente adequado para uma interação mais ativa com e entre os alunos. Foi assim que lhes propôs que redigissem uma estorinha.

As redações produzidas nesse primeiro momento eram curtas e pouco criativas, apesar de possuírem uma certa coesão interna. Os textos eram fragmentos de estorinhas ouvidas ou lidas nos livros didáticos e revelavam a tentativa das crianças de seguirem um modelo e uma linguagem estereotipados. Eglê levantou duas hipóteses para esse comportamento: seria resultado do hábito que os adultos têm de falar criança como se essa fosse incapaz de compreender algo mais complexo, ou então, tal comportamento teria origem em estereótipos veiculados pelos próprios livros didáticos. A autora acredita que ambas as hipóteses estão corretas.

Os textos produzidos se pareciam com blocos de orações justapostas. Eglê apresenta os problemas mais frequentes nestas primeiras redações: o uso excessivo de sentenças coordenadas, da conjunção e ou de sua substituição por “a” ou “então”, o uso extremo da repetição como elemento anafórico, ou melhor, a substituição completa da anáfora, enquanto elemento de coesão textual, por repetições. Ela afirma que 72,42% das conexões entre orações eram de natureza coordenativa, o que revelava baixa flexibilidade liguística dos alunos. As orações eram poucas, cerca de 13,75 por estorinha, em uma média de quatro períodos, revelando uma menor fluência linguística, mais pela mínima complexidade das orações do que pelo seu número reduzido. As orações possuíam apenas o verbo e seus argumentos, quando não se dava a elipse de um destes. Cerca de 90% das orações eram de complexidade mínima. As crianças não faziam uso de clíticos, mas também não os substituíam por pronomes do caso reto, como ocorre na linguagem coloquial: nos 22 ambientes em que caberia o uso do clítico, elas optaram pela construção elíptica. O uso do dialeto local também interferiu na produção das redações, seus reflexos mais latentes eram a falta de concordância verbal quando da distância do sujeito ou de sua posposição em relação ao verbo e também a falta de flexão dos elementos determinados dos sintagmas nominais (como em “os bolinho”), ou a não concordância do adjetivo predicativo com o sujeito.

Quanto aos problemas ortográficos, a autora afirma que os desvios apresentavam cinco padrões: substituição de letras mantendo-se a mesma forma fonética; grafia não correspondente a representação fonética, apesar de a pronúncia ser a habitual; erros relacionados à variação dialetal na linguagem; erros de separação silábica equivocada; e total afastamento entre grafia e representação fonética. Para a autora, a maioria dos erros reflete questões referentes à variação dialetal. Por tal motivo, Eglê considera ser importante levar as crianças a compreenderem tal variação e compararem sua pronúncia (e, mais à frente, sua escrita) com a pronúncia-padrão.

Eglê afirma que todos esses problemas presentes nas redações dos alunos revelavam seu sentimento de desvalorização e incapacidade. Para a autora, o declínio da espontaneidade e criatividade das crianças era causado pela própria escola que, rejeitando, desprestigiando e ridicularizando seu dialeto, impunha-lhes as convenções e as normas do dialeto-padrão culto. Essa repressão linguística associada ao autoritarismo do ambiente de sala de aula acaba por reduzir a expressividade, a espontaneidade e a criatividade das crianças. Ela deixa claro que não se trata de caracterizar esses alunos como menos capazes ou detentores de uma linguagem inferior: a questão é que eles estavam apenas iniciando sua vida escolar e já lhes tolhiam a capacidade comunicativa ao lhes imporem um dialeto que ainda não dominavam, ao mesmo tempo em que qualquer expressão carregada de regionalismo ou coloquialidade era rapidamente rejeitada. Como se expressariam nessas condições? Eglê afirma que o professor deve compreender a linguagem da criança e não tentar transformá-la de antemão.

Dessa forma a autora percebeu que seus alunos precisavam recuperar sua autovalorização, reconhecendo-se capazes de expressarem-se a si mesmos, interagirem com a professora e entre si de forma espontânea e livre. Seu objetivo era levá-los a progredirem em fluência e flexibilidade linguística, sem impor-lhes a norma culta como substitutiva de sua própria linguagem. Levá-los a compreender a necessidade de certas convenções para a inteligibilidade dos textos. Aquela valorização do dialeto da criança não deve afastar o aprendizado da norma culta, o aluno não deve ser privado de dominar esse segundo dialeto que lhe será tão necessário dentro da sociedade.

No segundo capítulo a autora começa a descrever algumas atividades que empreendeu na busca de que as crianças compreendessem que a linguagem pode ser usada de diferentes formas, e que há algumas variações dialetais que têm prestígio social e outras que não têm. Ela objetivava que as crianças entendessem que a norma culta, correspondente à linguagem das camadas sociais que detêm poder econômico, foi o dialeto definido como padrão justamente por ser uma variação socialmente prestigiada. Eglê definiu como um de seus objetivos que seus alunos compreendessem essa oposição entre o padrão culto e o popular e que fossem capazes de produzir frases e expressões em ambos os dialetos. Dessa forma, a professora propôs atividades escritas em que eles pudessem perceber essas diferenças nas falas do pedreiro, do padeiro, do delegado, da diretora etc. Todas essas atividades eram antecedidas por discussões orais e os alunos eram sempre lembrados de que nenhum desses dialetos é mais correto que outro. Depois de duas semanas, ela aplicou um questionário oral sobre toda aquela discussão a respeito dos usos da língua e uma tarefa escrita em que cada aluno deveria escrever um diálogo entre ele, enquanto “escritor escolarizado”, e personagens da sociedade como o pipoqueiro ou o lixeiro.

Após essa avaliação ela começou a introduzir as primeiras convenções da escrita, primeiro por meio de diálogos e dramatizações, depois aplicando as conclusões em trabalhos escritos, no que concerne à pontuação em frases interrogativas, afirmativas e exclamativas. Ela também aplicou um exercício em quadrinhos no qual eles pudessem escrever as falas nos balões compreendendo as sucessões de eventos e de diálogos e, depois, transcrevendo em forma de texto as conversas, com a pontuação adequada. De todas essas atividades a autora concluiu que os alunos, ao escreverem fazendo uso da norma culta, associavam a ela o uso de expressões de etiquetas sociais de boa educação. Também percebeu que pouco a pouco deixavam de inserir em seus textos expressões características de seu dialeto local, fazendo uso destas apenas quando queriam representar a fala de personagens de seu meio. Eglê afirma que a evolução das crianças no que diz respeito à pontuação e ortografia era resultado de sua estratégia de introduzir tais conteúdos passo a passo, fixando objetivos graduais e escalares que seriam exclusivamente considerados por ocasião das avaliações.

No capítulo três a autora descreve as atividades em que as crianças reproduziam estorinhas prontas. A reprodução era antecedida pela leitura expressiva da estória por parte da professora, pelo estudos dos recursos expressivos do texto, pela interpretação oral em grupo, pela ordenação e reordenação das unidades do texto e pela ilustração, feita pelas crianças, de eventos do texto. A reprodução seria o último passo dessa atividade. Durante o momento de estudo dos recurso expressivos do texto, as crianças teriam a oportunidade de aprenderem novas palavras, novas formas de conexo entre orações, o padrão da concordância verbal e nominal, entre outras convenções to necessárias prática da escrita em norma culta. Como avaliação para essas atividades de reprodução, a professora propôs a reprodução de um texto de uma aluna conhecida por todos na comunidade. Ela revela que apesar do caráter mimético da atividade, os alunos demonstraram espontaneidade e pequenas inovações de estilo em seus textos.

Eglê afirma que a passagem para a produção textual se deu quase imperceptivelmente para os alunos. Ela propôs um trabalho em quatro etapas: a primeira consistia em produzir um texto a partir de quadrinhos de uma estorinha previamente organizados segundo os acontecimentos; na segunda etapa, os quadrinhos não estariam ordenados; na terceira, a estorinha deveria ser escrita a partir de um parágrafo inicial dado; na última etapa os alunos produziriam um texto livremente a partir de estímulos diversos. A autora cita na segunda etapa uma estratégia utilizada por ela para estimular a interação entre os alunos: a redação coletiva. Essa atividade consistia em levá-los a discutir a respeito da ordenação correta dos quadrinhos, das possibilidades de invenção de fatos. Ela revela que essa prática se tornou habitual e que os alunos, colaborando uns com os outros, evoluíram em fluência linguística, ao compartilharem descobertas e evoluções. Uma atividade referente à última etapa destacada por ela como bem sucedida foi o trabalho do borrão: as crianças fizeram uma mancha com tinta em um papel e, a partir do desenho sugerido pela mancha, deveriam criar uma estorinha.

A autora afirma que a evolução das crianças foi excepcional, mas que apesar disso em alguns momentos algumas delas oscilavam entre um texto muito bem escrito e um trabalho “desastrado”, segundo suas palavras. Para que tais oscilações se tornem menos frequentes ela explica que há a necessidade de continuidade no trabalho do professor, de constância e paciência por parte de quem ensina.

Os alunos dessa turma, antes desvalorizados pelos outros e por si mesmos, passaram a considerar a escrita como uma forma de expressão pessoal, demonstrando espontaneidade tanto nas atividades orais quanto nas escritas. Agora eles compreendiam que sua linguagem não era errada. Compreenderam que havia uma norma-padrão a ser aprendida e que essa era importante para a inclusão deles na sociedade e no mundo da escrita. Seus textos agora apresentavam coesão. Houve um aumento significativo na fluência linguística daquelas crianças, cuja média de períodos por redação passou de 4,4 para 13,8. Agora eles compreendiam a existência de várias formas de conexão entre orações além da coordenação de sentenças: eram capazes de construir orações subordinadas temporais, causais, relativas, reduzidas, entre outras. Aquelas orações de complexidade mínima passaram de 90% para menos de 55% do total de orações utilizadas. Quanto ao domínio do dialeto padrão culto, eles passaram a fazer uso de formas pronominais átonas e a concordância verbal se dava mesmo em ambientes de posposição e distância do sujeito em relação ao verbo. De toda essa evolução, Eglê conclui que a forma mais fácil de levar as crianças a dominar o dialeto padrão culto é justamente respeitando e valorizando o seu dialeto próprio, dando-lhes um espaço para expressão e despertando a sua consciência quanto à existência das variações dialetais.

Redação na Escola é uma obra deslumbrante. Eglê Franchi demonstra que seu trabalho com essa turma de terceira série não se resumiu a uma pesquisa de campo. Ela demonstra ter empenhado todas as suas forças na busca da evolução dessas crianças no exercício da escrita. A abordagem sociolinguística da autora revela sua preocupação com a realidade daquelas crianças e desmistifica muitos aspectos relativos ao aprendizado da norma culta. A autora colocou no livro cópias das próprias redações dos alunos, o que dá uma ideia ainda mais próxima da realidade de seu trabalho em sala de aula. As atividades propostas se mostraram bastante criativas e instrumentalizavam os alunos para uma prática autônoma do ato de escrever. O livro é bastante útil para professores que desejam ver seus alunos aprenderem a fazer uso da escrita enquanto elemento de expressão pessoal.

Por Lorena Brandizzi

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