Mostrando postagens com marcador Fernando Pessoa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Fernando Pessoa. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 3 de março de 2011

Uma análise do Poema II de "O guardador de Rebanhos"




O meu olhar

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro, em "O Guardador de Rebanhos", 8-3-1914
O texto trata da questão da percepção do mundo pelo homem, da relação entre o homem e um mundo cuja essência é uma eterna novidade, caso o homem saiba “olhar”. O poema, escrito em versos livres, apresenta um texto repleto de palavras que fazem referência à natureza humana: inicialmente uma referência (positiva) aos sentidos do homem, à possibilidade de um contato direto com o mundo; posteriormente, há uma referência (negativa, por assim dizer) à sua capacidade de reflexão. Na primeira metade do poema temos palavras como “olhar”, “andar”, “vejo”, “nascer”. É interessante notar que a partir do 13º verso (justamente o verso que divide o poema ao meio), aparecem palavras que remetem à mente humana: “pensar”, “compreender”, “filosofia”, “saiba”. No entanto, tais palavras, aparecem revestidas de uma carga negativa, algo perceptível, como seria de se esperar, desde a escolha sintática: “Mas, não penso nele [Mundo] (...)”, “(...) Pensar é não compreender... / O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) (...)”, “Eu não tenho filosofia (...)”, “(...) não é porque saiba o que ela [Natureza] é (...)”, “(...) Quem ama nunca sabe o que ama / Nem sabe porque ama, nem o que é amar (...)”, “E a única inocência [é] não pensar”. É igualmente interessante, a forma indireta como o autor constrói algumas dessas estruturas de negação, especificamente as sentenças em que ensaia uma definição do ato de pensar: ela não afirma que “Pensar não é isso”, mas que “Pensar é não isso”. Até quando não há um lexema de negação, essa estrutura é seguida, “Pensar é estar doente dos olhos”: não há o referido lexema, mas a própria palavra “doente” carrega consigo essa carga negativa, abominável, desagradável. O eu-poético faz uso dessa indicação negativa indireta nas sentenças em que deseja conceituar o ato de Pensar. Quando ele expressa a sua experiência individual no que diz respeito a esse tema, a indicação negativa é direta: “Mas, não penso nele [Mundo] (...)”,“Eu não tenho filosofia (...)”.
Voltando os olhos à estrutura geral do poema, o que se percebe é que há uma relação dialética entre as duas partes do poema: na primeira o eu-poético sugere que a partir do “olhar”, um olhar sem intermediários, é que o homem tem a possibilidade de acesso “à eterna novidade” do Mundo; na segunda, ele afirma que esse acesso é bloqueado a partir do momento em que há a intermediação da reflexão entre o olhar e a experiência de percepção do Mundo. Digo sugere quanto à primeira parte, porque o que o eu-poético descreve é a sua conduta (“meu olhar”, “tenho o costume”, “o que vejo”, “eu sei”, “sinto-me nascido”). Ao descrever de forma tão positiva e promissora a sua experiência pessoal, por assim dizer, há uma sugestão de que esse é o caminho desejável. Quanto à segunda parte, não há sugestão, há afirmações (parafraseando: ‘O Mundo não se fez para isso, mas para aquilo’, ‘pensar é não isso’, ‘quem ama nunca sabe o que ama’, ‘amar é isso’) e nessas afirmações, contraditoriamente, há negação, há a impressão (no sentido de imprimir) no leitor de algo indesejável no ato de refletir.
Concluindo, para não nos alongarmos mais, considerando todo esse movimento dialético interno ao poema, há uma contradição latente que salta aos olhos: o eu-poético deprecia a reflexão, a filosofia, o pensar, entretanto, o próprio poema é produto de um ato de reflexão, de um pensar filosófico, no sentido de um pensar que problematiza. Nada mais filosófico, mais problematizador do que questionar a validade do ato de pensar.

Uma análise do poema "Tão cedo passa tudo quanto passa!", de Ricardo Reis




Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

Ricardo Reis, 3-1-1923

O poema trata da vida enquanto espaço da transitoriedade. Há a aliteração da consoante |s|, sugerindo uma atmosfera de suavidade, de calma, a mesma calma com a qual o eu-poético aceita a transitoriedade da vida. Uma transitoriedade que faz com que tudo se encerre de forma precoce. O segundo verso pausa antes de que se encerre o significado que sugere, há o efeito de cavalgamento: o referido verso se encerra de forma precoce, lançando seu conteúdo sobre o terceiro verso. O encerramento precoce do verso pode ilustrar a própria precocidade com que tudo quanto morre... morre. O eu-poético constata tal precocidade, e inicia o terceiro verso de forma definitiva e exlamativa: “(...) Morre!”. Essa morte é definitiva: assim como encerra a unidade gramatical, ela encerra tudo e o faz de forma precoce. Também é precoce a forma como o autor constrói as duas sentenças gramaticais que preenchem os dois primeiros versos (e parte do terceiro): as sentenças são construídas na ordem VS, “passa (...) tudo”, “morre (...) tudo”. O verbo antecede ao sujeito fugindo da ordem natural do português que é a ordem SVO. O verbo é inserido de forma precoce na estrutura gramatical da sentença, sugerindo, mais uma vez, a própria precocidade do fim da vida. O eu-poético percebe a natureza dessa dinâmica e chega à conclusão de que a fugacidade da vida se impõe de tal forma que nada do que há (e o que há é “tão pouco”) pode ser apreendido pelo pensamento, pela razão. Nossa impressão do mundo é apenas imaginação, produto de uma reflexão impregnada de subjetividade, de extrapolação, por assim dizer, pois nada é passível de “se saber”. Diante de tal conjuntura, o que resta ao homem é o carpe diem, é gozar a vida. Mas pode-se dizer que há algo como uma armadilha, algo que sugere um desconforto, uma limitação nesta sugestão de carpe diem: o eu-poético impõe o silêncio e essa imposição é taxativa, definitiva. Ele encerra o penúltimo verso sem encerrar a sentença gramatical, deixando suspenso seu último conselho (ou ordem). Ao finalizar a sentença o eu-poético cria um efeito semântico assimétrico, pois as três primeiras expressões passam a ideia de prazer, deleite: devo circundar-me de rosas, ou seja, estar em contato com o que é belo, agradável aos olhos, ao olfato, devo amar, relacionar-me com o outro, doar-me e receber a doação do outro, devo beber, sujeitar o meu paladar ao que lhe cause prazer, satisfação, e, por fim, devo calar (?!). A assimetria é flagrante. Como assim devo me calar? Sim, “(...) E cala”. Apesar de incluí-lo no final da unidade gramatical, o eu-poético negou-se a inserir esse último imperativo no final do verso, da unidade poética, pois para ele essa ordem não é acessória, ela é fatal, é capital. E o que é interessante é que, ao encerrar a unidade sintática a que pertence, a ordem de “calar” encerra tudo, pois “o mais é nada”. Esse silêncio carrega consigo uma atitude de submissão, de aceitação e até de credulidade passiva: tudo morre, mas não morre por morrer, morre ante os deuses, sob sua vontade. Aqui a presença também fatal dos deuses e dos seus arbítrios. Dessa forma, não há o que se objetar, não há o que questionar, não há nem o que se saber. Voltando ao início do poema, percebemos que há um paralelo estrutural entre o terceiro e o sexto versos: ambos iniciam-se finalizando o verso anterior. Esse paralelo pode ser também semântico, pois o que é a morte, se não um calar eterno, um calar tão definitivo quanto o “E cala” proposto/imposto pelo eu-poético? Há uma diferença entre os referidos versos, enquanto no terceiro verso o eu-poético apresenta sua constatação de forma exclamativa, quase como uma descoberta, no sexto verso não há exclamação, não há surpresa, há aceitação, conformação: há o ponto final, tão final, tão definitivo quanto o conselho/ordem de calar-se.

A norma culta e o português jurídico

  Por que os textos oficiais devem obedecer às regras gramaticais da língua portuguesa? Uma análise do inciso V do art. 5º da Portaria...