terça-feira, 18 de junho de 2013

Resenha de “O visitante” de Hilda Hilst




   Em “O visitante” (1968), Hilda Hilst nos apresenta uma família abalada pela possibilidade/realidade de um adultério. Ana, mulher doce, bela e “imediatamente atraente” tem uma filha, Maria, que “tem alguma beleza”, mas é quase sempre seca e grave. Maria é casada e seu marido é simplesmente Homem, “um todo cortez” de “porte ereto e altivo”. A peça tem início com uma conversa entre mãe e filha. A mãe, sempre meiga, mesmo que de forma postiça, insiste em falar de movimentos e ruídos em seu ventre. A filha sempre seca e irônica, afasta qualquer possibilidade de conversação pacífica. 
        A ironia e a rusticidade de Maria escondem os ciúmes que a corroem e corroem seu casamento. É interessante notar que na representação no palco, o Homem ata mãe e filha por meio de um longo tecido branco que, apesar de não lhes tolher completamente os movimentos, não lhes permitiria que se retirassem de cena isoladamente. A chegada deste Homem no meio da conversa entre mãe e filha acrescenta tensão à cena, uma tensão a princípio latente. A tensão sai de seu estado de latência quando Ana e o Homem entoam em uníssono uma música de conteúdo desconcertante. A partir deste momento, Maria não esconde mais do marido sua ira e o este já não tenta mais manter a paz com a mulher. Ana, quando presente, tenta sempre mascarar as palavras, as expressões, os fatos, saturando-os de subjetividade. Com efeito, a “verdade” se reveste de nuanças específicas na fala de cada personagem. 
        O Homem espera uma visita, alguém que mal conhece, mas cuja chegada aguarda alegremente. A visita é Meia-Verdade, um homem que possui um defeito que o torna metade perfeito, metade deformado. Esta figura surge como um elemento de mediação dentro da relação conflituosa que se estabelece entre Ana, Maria e o Homem. Em meio a uma conversa sobre a natureza do belo, Ana revela que um dia a beleza a iludiu: conta que em certa noite fora visitada por um homem, “um todo cortez”. Meia-Verdade explora a confissão à procura da identidade desta sombra que “a princípio lembrava um todo cortez”, mas que depois se fez mais densa. As falas de Meia-Verdade quase sempre terminam em reticências, mostrando-se abertas à complementação pelos outros personagens, como se ele apenas direcionasse o raciocínio destes.
      Maria retorna à cena e em um momento de tensão aguda acusa o marido de deitar-se com sua mãe, Ana. No texto, o Homem agride Maria. No palco, eles são ocultados pelo lençol em uma posição que sugere uma relação sexual. Enquanto Homem grita com Maria, Meia-Verdade golpeia o chão do palco com uma toalha molhada, o que cria um efeito sonoro que aumenta ainda mais a tensão da cena.
      Após a agressão, Maria discute com Meia-Verdade e questiona sua “amizade” com o marido. Ana, sempre com seu tom conciliador postiço, defendo Meia-Verdade, o que leva Maria à conclusão de que o filho que a mãe espera é de Meia-Verdade e não de seu marido. No palco, Homem e Ana envolvem Maria no lençol que antes unia mãe e filha. Ana senta-se no chão e põe a filha no colo e, cantando uma música de ninar, descobre a face da filha.
     Percebe-se na peça de Hilda Hilst que há uma tensão entre o dito e não dito e essa tensão é intensificada pelas pausas “absolutamente necessárias” que se interpõem entre as falas. Trata-se de um texto dramático profundamente encharcado de lirismo: até as pausas e as rubricas são poéticas. O lirismo dá vazão a significados que a prosa talvez não seria capaz de veicular com a mesma intensidade. A amargura, a tensão, a decepção, a ilusão voluntária, não poderiam ser tão profundamente explorados em uma estrutura que não envolvesse lirismo.

HILST, Hilda. “O visitante” in ________. Teatro Completo. São Paulo, Globo: 2008. (p. 145-182)

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